O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou, por seis votos a cinco, o governo a revisar e, eventualmente, anular as anistias concedidas a mais de 2,5 mil cabos desligados da Aeronáutica durante o regime militar. O caso diz respeito à Portaria 1.104, editada em 1964, por meio da qual a Força Aérea limitou em oito anos o tempo de serviço militar dos cabos, prazo após o qual eles deveriam ser automaticamente desligados. Regra do tipo existe até os dias atuais.
Pela decisão, o governo poderá agora abrir processos administrativos, com direito à defesa, para rever todas as anistias concedidas a cabos da Aeronáutica sob o argumento de perseguição política com base naquela portaria. Contudo, mesmo que as anistias venham a ser anuladas, as indenizações já pagas não devem ser devolvidas, determinou a maioria do Supremo.
O caso
Em 2002, a Comissão de Anistia, após o estudo de duas comunicações secretas da Força Aérea reveladas após a redemocratização, concluiu que a portaria que resultou no desligamento dos cabos teve como objetivo perseguir toda a categoria, vista como subversiva à época. A norma teria sido editada, portanto, com motivações “exclusivamente políticas”, segundo o colegiado.
O entendimento abriu caminho para a concessão de milhares de anistias e o consequente pagamento de indenizações mensais a título de reparação, uma vez que ficou atendida, para a concessão do direito, a condição prevista em dispositivo constitucional.
Desde 2006, porém, a Advocacia-Geral da União (AGU) mudou de entendimento, passando a defender que o ato teve como objetivo apenas racionalizar o contingente da Aeronáutica, que em 1964 possuía quase o mesmo número de cabos (6.339) e soldados (7.661), o que acarretava em problemas hierárquicos e administrativos, sustentou o órgão.
Em 2011, um grupo de trabalho interministerial, com membros do Ministério da Justiça e da AGU, foi criado para rever tais anistias, amparados em um novo entendimento de que a Portaria 1.104/1964-GM3 tratou-se de um mero ato administrativo das Forças Armadas, não podendo ser reconhecido como de motivações “exclusivamente políticas”. Por essa visão, as anistias concedidas não atenderiam às condições da Constituição.
Supremo
O caso chegou ao STF após um cabo ter obtido decisão favorável pela manutenção de sua anistia no Superior Tribunal de Justiça (STJ, que entendeu haver vencido o prazo de cinco anos para que o governo pudesse rever a concessão do direito, o chamado prazo decadencial dos atos administrativos, previsto na Lei 9.784/1999.
A AGU recorreu ao Supremo, pedindo a anulação da anistia, por entender que o ato de concessão seria uma violação a regras constitucionais, motivo pelo qual não poderia ser aplicado o prazo decadencial. O órgão estimou em R$ 43 bilhões o impacto nos cofres públicos pelos próximos dez anos de uma eventual decisão favorável aos cabos, incluindo na conta o pagamento de retroativos que remontam a 1988, mais correção monetária.
Segundo dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, sob o qual está hoje abrigada a Comissão de Anistia, há no momento 2.529 cabos recebendo a indenização da Aeronáutica, em pagamentos mensais que somam R$ 31,5 milhões.
O advogado Marcelo Torreão, que representou os interesses dos cabos, contestou os dados da AGU. Para o defensor, o impacto orçamentário das reparações seria “zero”, pois as indenizações vinham sendo pagas, em alguns casos, há 17 anos, e assim já estariam plenamente absorvidas no orçamento.
O defensor alegou que documentos históricos atestam que os cabos foram perseguidos como um todo, por se organizarem em associações de classe contrárias ao regime militar à época, sendo assim indubitável que a portaria da Aeronáutica teve motivações políticas, afirmou.
Tese vencedora
O plenário do Supremo mostrou-se dividido sobre o assunto. De um lado, o relator do caso, ministro Dias Toffoli, entendeu que as anistias não poderiam ser mantidas porque o ato no qual se basearam não teve motivação exclusivamente política, não atendendo assim às condições previstas na Constituição.
Sendo o ato que ampara as anistias inconstitucional, Toffoli concordou que não deveria ser aplicado o prazo decadencial, permitindo assim ao governo rever e, eventualmente, anular cada uma das anistias concedidas aos cabos, caso a caso.
Em seu voto, que prevaleceu ao final, Toffoli ressalvou que as revisões devem verificar se além da portaria não há nenhum outro ato que justifique a concessão da anistia, “assegurando-se ao anistiado, em procedimento administrativo, o devido processo legal”. Ele foi acompanhado pelos ministros Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Luiz Fux.
Divergência
Na corrente vencida, o ministro Edson Fachin divergiu. Para ele, não se pode afastar a incidência do prazo decadencial, pois a mudança de interpretação a respeito da natureza “exclusivamente política” da portaria da Aeronáutica não foi capaz de tornar “flagrantemente inconstitucional” a concessão da anistia.
Ele foi acompanhado por Rosa Weber, Cármen Lúcia, Marco Aurélio Mello e o decano, Celso de Mello, que destacou, em seu voto, que duas comunicações secretas produzidas pelo regime militar em 1964 e 1965 demonstram a motivação política da portaria da Aeronáutica, sendo suficientes para afastar assim a hipótese de manifesta inconstitucionalidade das anistias.
O decano do Supremo frisou que o entendimento que levou à concessão das anistias “resultou de documentos que evidenciaram que a Força Aérea Brasileira estava convencida do caráter subversivo dos cabos e que havia elaborado um plano para excluí-los das fileiras daquela Força”.
(ABr/EBC)