*Marcos Machado
“Não importa a cor do gato, o que importa é que ele cace o rato.” A frase, tornada célebre por Deng Xiaoping, arquiteto da modernização econômica da China, nasceu em um contexto pragmático: a superação da estagnação ideológica do maoismo para dar lugar ao desenvolvimento. Em outras palavras, pouco importava se o modelo fosse socialista ou capitalista, desde que resolvesse os problemas concretos do povo. Um ensinamento simples, direto e eficaz. No Brasil, o provérbio ressurge com sabor de ironia: em nome de uma democracia supostamente mais eficiente, o país corre o risco de sufocar justamente o que a define: a liberdade.
Hoje, o argumento de que o “fim justifica os meios” vem sendo usado não para promover desenvolvimento ou bem-estar, mas para justificar um perigoso retrocesso: a censura. Disfarçada sob a retórica da “defesa da democracia”, a mordaça reaparece como solução para o que se convencionou chamar de “desinformação” ou “discurso de ódio”, rótulos elásticos e convenientes que se moldam conforme o intérprete da vez. O problema? A subjetividade dessas definições se torna uma ferramenta de controle, não de proteção.
O paradoxo se escancara: para proteger a democracia, fere-se o seu princípio fundante: a liberdade de expressão. A liberdade de pensar, de dizer, de discordar. Em nome da ordem, instala-se o medo. Em nome da paz, criminaliza-se a opinião. Redes sociais, que deveriam ser arenas de debate público, transformam-se em campos minados, onde um post, um meme ou uma crítica mal colocada pode significar o silenciamento, o banimento, ou até mesmo o processo judicial.
Há um esforço deliberado de agentes do Estado (que se autointitulam de instituições), de grupos políticos e até de parte da imprensa para normalizar essa nova censura polida, institucional, justificada por “boas intenções”. Como se o velho autoritarismo vestisse agora terno e gravata, discursando sobre “direitos humanos” enquanto cala vozes incômodas. O nome disso não é civilização, é sofisticação do arbítrio.
Voltando ao velho ditado de Deng: no Brasil de hoje, o problema não é mais a cor do gato. O problema é que o gato, seja preto, branco, ideológico ou progressista, já não se importa com o rato. Ele quer é controlar os demais gatos, determinar o tom do miado, regulamentar o ronronar. E o rato? O rato continua solto, sorrateiro, multiplicando-se nas frestas da institucionalidade frágil, alimentando-se do medo e da omissão.
Se não cuidarmos, o que hoje é censura disfarçada, amanhã será silêncio imposto e, então, talvez tarde demais, nos daremos conta de que a democracia sem liberdade é apenas uma palavra bonita, pintada na fachada de um regime que não caça mais ratos, apenas vozes.
*Jornalista profissional diplomado, editor do portal Do Plenário, escritor, psicanalista, cientista político ocasional autoproclamado, analista sensorial, enófilo, adesguiano, consultor de conjunturas e cidadão brasileiro protegido (ou não) pela Constituição Brasileira, observador crítico da linguagem e da liberdade