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sábado, julho 19, 2025

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Desde quando censura é mecanismo de proteção à democracia?

Marcos Machado

Volta e meia surge o velho e problemático argumento: “É preciso censurar para proteger a democracia”, mas desde quando a censura foi uma aliada da liberdade? Desde quando a mordaça virou escudo? Essa ideia, vendida como uma medida nobre, esconde em seu cerne uma perigosa inversão de valores: a de que é necessário limitar a liberdade para garanti-la. Um paradoxo que, em essência, mina as bases do próprio regime que pretende preservar.

A retórica é conhecida. Tiranos, de ontem e de hoje, sempre alegaram motivos elevados para justificar o controle da palavra. Seja para manter a ordem, seja para evitar o caos, o fato é que toda ditadura começou por onde? Pela imposição de uma verdade única, e o Brasil, lamentavelmente, começa a flertar com essa lógica perigosa, enquanto a sociedade observa, muitas vezes de forma acrítica, o avanço de mecanismos de controle sob o disfarce de “moderação de conteúdo”.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso IV, afirma de forma categórica: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.” Já no inciso IX, estabelece que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.”

Não para por aí. O § 2º do mesmo artigo reforça: “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados.” Ou seja, não há brecha interpretativa que autorize a censura sob qualquer pretexto — nem mesmo sob o véu da “proteção democrática”. A censura, seja prévia ou disfarçada de regulamentação posterior, é expressamente proibida pela Constituição.

O Art. 220 diz, textualmente:

“A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.” 

§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

§ É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

A quem cabe decidir o que é verdade?

Um dos grandes perigos da censura moderna — que muitas vezes se apresenta como “curadoria de conteúdo” ou “checagem oficial” — é o monopólio da verdade. Quem decide o que é fato e o que é fake? Qual é o tribunal da verdade? E quem fiscaliza os fiscais?

Delegar ao Estado, a plataformas ou a entes ideológicos o poder de determinar o que pode ou não ser dito equivale a abrir mão de uma das principais características de uma sociedade democrática: o debate livre, aberto e, sim, muitas vezes incômodo. A verdade, como já advertia Karl Popper, só pode emergir do confronto entre ideias, da exposição pública ao contraditório. Sem isso, o que se impõe é dogma.

Ao longo da história, grandes pensadores advertiram sobre os perigos da censura. John Stuart Mill, no clássico Sobre a Liberdade, argumentava que “a humanidade só é capaz de progresso pela livre expressão e confronto de ideias”. Mesmo ideias falsas devem ser ouvidas, pois ao serem refutadas publicamente, fortalecem a verdade.

Censura não é vacina contra o caos. É a doença fantasiada de remédio.

Voltaire, ou pelo menos a frase atribuída a ele, resumia o espírito da liberdade de expressão: “Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo.”

Hannah Arendt alertava que os regimes totalitários começam quando a verdade deixa de ser um bem público e passa a ser propriedade de um ente central, estatal ou partidário. A substituição dos fatos por versões “oficiais” é um dos primeiros passos da opressão.

George Orwell, em 1984, mostrou com clareza o que acontece quando um governo decide monopolizar o discurso: “A liberdade é a liberdade de dizer que dois mais dois são quatro. Se isso for concedido, tudo o mais se segue.”

Democracia não é a ausência de conflitos — é justamente o espaço institucional para o confronto de ideias. A pluralidade é a sua essência. Suprimir vozes, ainda que sob a justificativa de conter abusos, é um passo rumo ao autoritarismo, e não há autoritarismo bonzinho.

A censura não protege a democracia; ela a corrói silenciosamente, enquanto se disfarça de mecanismo de defesa. O que se deve combater são crimes, e estes devem ser apurados com base no devido processo legal, sem atalhos que comprometam o debate público.

Se queremos uma sociedade mais justa, crítica e madura, precisamos de mais liberdade, e não menos. Porque quando se cala um lado, o outro deixa de ter com quem dialogar — e o silêncio não constrói, apenas encobre.

Censura não é vacina contra o caos. É a doença fantasiada de remédio.

*Jornalista profissional diplomado, editor do portal Do Plenário, escritor, psicanalista, cientista político ocasional autoproclamado, analista sensorial, enófilo, adesguiano, consultor de conjunturas e cidadão brasileiro protegido (ou não) pela Constituição Brasileira, observador crítico da linguagem e da liberdade

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