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sexta-feira, dezembro 6, 2024

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Bentinho foi criado debaixo da saia da mãe. Era corno em potencial

Ray Cunha

Bento de Albuquerque Santiago, Bento Santiago, Bentinho ou Dom Casmurro, é o protagonista do romance Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis. A trama é contada por Bentinho, daí que ninguém sabe se aconteceu realmente ou é fantasia. Ele foi mimado pela mãe viúva, e a gente sabe que meninos criados dessa forma são paus-mandados das mulheres pelo resto da vida, e, talvez por isso, por serem paus-mandados, acabam, paradoxalmente, desenvolvendo também misoginia.

Em certo momento da vida de Bentinho ele passa a acreditar que sua esposa, Capitu, pôs chifre nele, com seu melhor amigo, Escobar, que morre afogado, apesar de bom nadador. Capitu pare uma criança, Ezequiel. Segundo Bentinho, Ezequiel é uma cópia de Escobar. Ninguém mais no romance acha isso; só ele. Exila Capitu na Suíça e Ezequiel morre na flor da idade. Só restam a Bentinho dois caminhos: suicidar-se ou conviver com os fantasmas do seu passado. Escolhe a crosta de Dom Casmurro.

O grande interesse dos leitores de Dom Casmurro é Capitu, Maria Capitolina de Pádua Santiago, nada menos que a personagem de ficção mais famosa do Brasil, passando, inclusive, Maria Deodorina da Fé Bittencourt Marins, ou Reinaldo, ou Diadorim, de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa.

Capitu é uma adolescente sensual, que lembra Lolita, de Vladimir Nabokov, mas uma mulher de personalidade forte, alta, morena, de cabelos grossos e compridos, nariz reto e comprido, boca fina e queixo largo, olhos claros e grandes, “de ressaca, oblíquos e dissimulados”, segundo Bentinho. Olhos de ressaca, o que é isso? Certa vez, banhei-me em Copacabana em mar de ressaca, ou encapelado. Um olhar assim é inquieto e traz à tona um turbilhão interior. Para Bentinho, Capitu era assim.

Também ele a vê como uma cigana, mulher misteriosa, que olharia o outro de forma indireta, com fingimento. No entanto, a gente vê que Capitu não é isso, não é fingida. Há, porém, uma frase fundamental para se entender a trama de Dom Casmurro, proferida pelo próprio: “Capitu era mais mulher do que eu homem”.

Machado de Assis é considerado pela crítica literária o ponto máximo da literatura brasileira. Creio que a principal coordenada que leva a essa consideração é a poesia. Para mim, poesia é escrever em profundidade. Explico.

Segundo o historiador Plutarco, por volta de 70 a.C., o general romano Pompeu estava na ilha de Sicília, ao sul da Itália, com a missão de transportar trigo para Roma, que passava por uma crise de abastecimento causada por uma rebelião de escravos. Havia uma tormenta no porto. Naquela época, as limitações tecnológicas tornavam a navegação de alto risco, além dos ataques piratas. Mas diante da situação e do comprometimento de Pompeu com Roma ele se fez ao mar. “Navegar é preciso, viver não é preciso” – proferiu.

A vida material é finita, mas enquanto a vivemos é preciso navegar, mesmo que haja uma tormenta no porto. É necessário transpor os obstáculos, sejam quais forem. É preciso navegar. Viver não é preciso. Pois que viver é navegar. Isso é poesia. Um corte em profundidade da vida. Assim escrevia Machado de Assis. Além disso, ele tem outros méritos, méritos que o faz emblemático em A IDENTIDADE CARIOCA, romance meu recém-publicado.

Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1839, e morreu na mesma cidade, que tanto amou, em 29 de setembro de 1908. Nasceu no Morro do Livramento, estudou um pouco, em escolas públicas, e não soube o que foi frequentar uma universidade. Mulato, era filho de um negro e uma portuguesa da ilha de São Miguel. Culto, era leitor inveterado. Escreveu cinco livros de poemas, mais de 600 crônicas, folhetins, fez jornalismo, escreveu crítica literária, dez peças teatrais, 200 contos e dez romances. Fundou a Academia Brasileira de Letras (ABL). Foi um cronista do Rio de Janeiro de sua época; um homem do seu tempo.

Ser um homem do seu tempo é viver intensamente seu tempo. No caso do escritor, ele escreve sobre seu tempo. Por exemplo: pode-se dizer que Luiz Alfredo Garcia-Roza é um homem do seu tempo. Apenas o Rio de Janeiro de Garcia-Roza não é o de Machado de Assis, nem o gênero. Copacabana, que Roza amava, está toda ela, pulsando, neste século, nos seus thrillers policiais.

Recentemente, a escritora e podcaster americana Courtney Henning Novak viralizou nas redes sociais. Ela lançou um desafio pessoal de ler um livro de cada país do planeta. Do Brasil, escolheu Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado, e escreveu, antes mesmo de terminar a leitura: “Preciso ter uma conversa com o pessoal do Brasil. Por que não me avisaram antes que este é o melhor livro já escrito? O que vou fazer do resto da minha vida depois que terminá-lo?”

A tradução lida por Novak é da também americana Flora Thompson-DeVeax, que vive no Rio de Janeiro. Conheceu a obra de Machado de Assis na Princeton University, onde estudou língua portuguesa. “Acho que para qualquer pessoa que se propõe a estudar o Brasil chega uma hora que tem que encarar o Machado” – esclarece Flora, para quem Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado em 1881, “me pareceu absurdamente moderno, hilário, surpreendente a cada página. Não consegui conceber por que o autor não era mais conhecido”.

Ela passou cinco anos traduzindo o livro, entendendo o significado de certas palavras, a época em que o livro se passa, a geografia e o meio social, a história do Brasil, a identidade carioca. Hoje, Flora é daquelas cariocas como eu, que morou na cidade e se apaixonou por ela. Não porque a cidade é maravilhosa, linda, esplêndida, mas, principalmente, porque contamos, Flora e eu, com o terceiro olho bem aberto, aquele que proporciona a visão em corte vertical.

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