Marcos Machado
O conflito não declarado
Desde o fim da Guerra Fria, o mundo vive em aparente paz. Nenhuma guerra mundial foi oficialmente deflagrada, nenhum bloco ideológico enfrenta outro em campo aberto, mas, sob a superfície, um novo tipo de confronto se expande invisível, demográfico e cultural. A invasão não vem de exércitos, mas de populações. Não é feita de bombas, mas de identidades.

O fenômeno ganhou força a partir da década de 2010, quando fluxos migratórios inéditos levaram milhões de pessoas de países muçulmanos para o coração da Europa. A chamada “crise dos refugiados”, de 2014 a 2016, marcou o auge dessa transformação. O que parecia um episódio humanitário se tornou um divisor de águas.
O alerta de Huntington
Em 1993, o cientista político Samuel P. Huntington publicou o artigo O Choque de Civilizações, no qual previa que os conflitos do século XXI não seriam mais ideológicos, como na Guerra Fria, nem econômicos, como nas disputas comerciais, mas sim civilizacionais, travados entre culturas e religiões.
Em sua análise, o Ocidente, fundado em valores cristãos e seculares, enfrentaria um atrito inevitável com outras civilizações, especialmente a islâmica. Ele previa que a globalização não uniria as culturas, mas as colocaria frente a frente e que as diferenças religiosas e morais seriam o novo combustível da guerra.
Três décadas depois, sua previsão soa menos como teoria e mais como realidade.
O despertar europeu
Dados do Pew Research Center mostram que, em 2016, a União Europeia abrigava cerca de 26 milhões de muçulmanos, ou aproximadamente 5% de sua população. Na França, eram 5,7 milhões (8,8%); na Alemanha, cinco milhões (6,1%); no Reino Unido, quatro milhões (6%); na Itália, 2,9 milhões; e na Bélgica, 7,6% da população, podendo chegar a 18% até 2050 se as tendências migratórias continuarem.
O que explica esse crescimento? Além da imigração, as diferenças de natalidade são marcantes. Enquanto a taxa média de fertilidade de mulheres muçulmanas na Europa é de 2,6 filhos por mulher, entre não muçulmanas é de 1,6. Em outras palavras, mesmo que as fronteiras se fechem, a balança demográfica continuará se inclinando.
Esse desequilíbrio populacional alimenta um dilema. Governos europeus dependem da imigração para compensar o envelhecimento e sustentar a economia, mas parte da sociedade teme a perda da identidade cultural. A questão não é apenas econômica, é existencial.
Novas fronteiras

As tensões emergem em diferentes níveis. Em bairros de Paris, Bruxelas, Londres e Milão, comunidades muçulmanas se expandem e preservam costumes próprios, muitas vezes em contraste com os valores seculares cristão-ocidentais. O uso do véu islâmico em escolas, as restrições alimentares e os debates sobre liberdade religiosa ou igualdade de gênero se tornaram temas recorrentes nas cortes e nos parlamentos.
Na França, a defesa do laicismo colide com o direito à expressão religiosa. Na Bélgica, escolas e mesquitas se multiplicam em zonas urbanas onde o francês já divide espaço com o árabe. Na Alemanha, o governo enfrenta o desafio de equilibrar integração e segurança após ondas migratórias intensas. Na Itália, a retórica política se polariza entre o acolhimento e a rejeição. E até em Portugal, tradicionalmente distante desses debates, cresce a discussão sobre identidade e fronteiras culturais.
Cruzada silenciosa
Para muitos, o que se desenrola é o que Huntington chamou de “guerra civilizacional”: o choque entre o universalismo secular do Ocidente e a cosmovisão comunitária do Islã. Não há exércitos uniformizados, mas há uma batalha simbólica travada nas urnas, nas escolas, nas redes sociais e nas fronteiras urbanas.
O aumento da radicalização islâmica, os atentados em solo europeu e o avanço de partidos nacionalistas em países como França, Itália e Alemanha reforçam a sensação de que o conflito já começou, ainda que sem declaração formal. É o embate entre dois modelos de sociedade: um que privilegia o indivíduo e a liberdade, outro que valoriza a fé e o coletivo.
Contraponto
Nem todos concordam com essa leitura. Acadêmicos alertam que o “choque de civilizações” simplifica realidades complexas e ignora o fato de que a maioria dos muçulmanos na Europa vive integrada, respeitando leis e costumes locais. Também lembram que muitos conflitos são internos, não entre civilizações e que a retórica de “guerra cultural” pode alimentar preconceitos e extremismos.
Ainda assim, a percepção pública é outra. Para boa parte da população europeia, há algo mais profundo em curso: uma disputa silenciosa pelo futuro cultural do continente. Não se trata apenas de economia, mas de identidade, de quem somos e quem seremos.
O relógio
Hoje, em países como França, Alemanha, Bélgica, Itália, Inglaterra, Portugal e até nos Estados Unidos, cresce a sensação de que “a guerra já começou”. Ela não se manifesta em batalhas, mas em políticas de imigração, no currículo escolar, nas leis sobre liberdade religiosa, no debate sobre gênero e religião.
O despertador tocou. A Europa, que por séculos exportou ideias, impérios e valores, agora se vê questionada dentro de casa, e o mundo observa: será este o início de uma nova cruzada? Ou a humanidade ainda será capaz de conciliar civilizações antes que o conflito se torne irreversível?
*Jornalista profissional diplomado, editor do portal Do Plenário, escritor, psicanalista, cientista político ocasional autoproclamado, analista sensorial, enófilo, adesguiano, consultor de conjunturas e cidadão brasileiro protegido (ou não) pela Constituição Brasileira, observador crítico da linguagem e da liberdade


