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quinta-feira, dezembro 12, 2024

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A dor, tantas vezes humilhante, de quem pare em hospital público

Zildenor Dourado

Um relato de quem presenciou cenas vergonhosas no passado.

Chocante, estarrecedor! O revoltante episódio do médico estuprador fazendo sexo oral em uma  mulher que dava à  luz  trouxe-me à lembrança episódios marcantes, também vergonhosos, que presenciei no início da minha vida profissional, como agente administrativo num hospital público, aqui em Brasília. O antigo Hospital da L2 Sul.

Naquela época meu pai não me deixava nem sonhar em ser jornalista.  Exigia  que eu fosse médico. algo que  os leitores verão que não teria nada a ver com o meu perfil pessoal. Sangue frio? Nunca tive! Talvez agora quem dispuser de  paciência e tempo para ler essa “crônica-textão” entenda isso.

  1. Eu era um tolo rapaz de 19 anos que conhecia bem pouco das agruras do mundo e das dores humanas. Pouco sabia da crueza do atendimento médico em hospitais públicos e do sofrimento dos pobres sem convênios nas filas nos postos de emergência dos hospitais, embora meu pai tenha trabalhado em  um hospital público, como zelador.

Quis o destino  que eu me tornasse um desses agentes administrativos, concursados, que datilografavam as antigas e longas fichas de emergência, remetidas aos médicos, antes  que eles colocassem suas mãos nas pacientes; isso quando nem se falava em crimes sexuais nas salas de exame, algo que se tornou até corriqueiro, nestes tempos de vale-tudo.

Estudava Biologia na UnB e, à noite, como agente administrativo da Fundação Hospitalar, atuava tanto na linha de frente da  Pediatria como na Ginecologia e Obstetrícia, onde muitas vezes imperava o caos e o acúmulo grávidas angustiadas no momento, que deveria ser divino, mágico,  de finalmente darem à luz.

Como poderia esquecer dos infernais plantões de 12 horas nos finais de semana, quando o número de   parturientes  crescia demais, enquanto o de ginecologistas e obstetras já era  bem inferior à necessidade da demanda, e parecia ser ainda menor aos sábados e domingos. Assim,  o ex-governador Roriz se transformava no nosso vilão, de cada jornada, a quem dirigíamos os constantes xingamentos que recebíamos dos impacientes pacientes, geralmente pobres, vindos das regiões administrativas de Brasília e dos confins de Goiás, Minas, Bahia, até do fim do mundo.

Lembro-me bem  de um dos meus primeiros  e mais difíceis plantões  quando a mulher de um PM, quase parindo pela boca,  chegou na ambulância e toda a equipe médica estava no horário do jantar, por volta das 23 h.

O agoniado  e musculoso marido dela me interpelou com braveza e me cobrara aos gritos  que eu tinha que ir lá no estacionamento do hospital  iniciar o procedimento do parto, “A bolsa dela já se rompeu. Vai logo  lá, caralho, tirar o meu filho!”

Desesperado, nervoso, eu que pouco conhecia sobre a anatomia das mulheres, era até um iniciante nas coisas do sexo,  respondi assustado e falando só a verdade:

__ Bolsa, que bolsa? Eu nem sabia que mulher tinha bolsa no corpo… sua mulher tem que esperar o pessoal da enfermagem chegar e o senhor fazer a ficha dela  primeiro _ respondi, seguindo as orientações de praxe.

Revoltado, o PM logo me deu voz de prisão, alegando que eu estava de zombaria ao negar atendimento médico à mulher, que gritava na ambulância, aos berros, para todo o hospital ouvir, menos os profissionais que deveria ouvi-la e que estavam fazendo suas refeições, ou tirando uma soneca restauradora, como de costume.

O policial se acalmara um pouco quando o vigilante, que também tivera recebido voz de prisão, saíra correndo em direção ao distante refeitório buscar algum médico, ou técnico de enfermagem, para garantir a nossa liberdade e a vida do bebê, coitado,  que não tinha culpa nenhuma de chegar antes da hora.

Confesso que já estava tão estressado e cansado naquele maldito plantão que até desejei ter sido levado mesmo preso pelo PM à alguma delegacia, onde eu pudesse dormir sossegado  na madrugada.

Também não me esqueço dos plantões normais quando eu atravessava  com prontuário nas mãos os corredores na maternidade, lotados de parturientes nervosas em cima das macas, genitálias desnudas, com as pernas pra cima, os lençóis caídos no chão, pedindo que a gente, qualquer servidor desqualificado como eu,  corresse atrás dos médicos, a qualquer custo, contrariando as ordens superiores da hierarquia funcional. Nada podíamos fazer!

Eu me sentia  constrangido, impotente, envergonhado. E se uma delas fosse minha parente ou me conhecesse de algum lugar…. que vexame aquele meu trabalho mesquinho e mal remunerado,  mas meu pai queria porque queria que eu fosse médico ainda.

Pior ainda era quando  tinha que transitar nos corredores lotados de mulheres à espera do parto, acompanhado de uma colega do Setor de Internação e Alta. Ela era  uma mulher já madura, quase aposentada,  esquelética, solteirona, que fumava entre as parturientes __ e sorridente, debochava em voz alta, aos risos:

“Essas putas, na hora de fodeeeer, será que  essas vacas gritavam  histéricas desse jeito e  ainda pediam ajuda de Deus para não morrer?”

De vez em quando, contudo, aconteciam cenas engraçadas no balcão de atendimento.  Lembro-me que uma vez um velho mal encarado levou a filha para  parir e quando eu lhe perguntara qual era o estado civil da jovem parturiente, ele  respondeu: “Solteira, mas vai ter que casar, viu?”  Acho que hoje a Secretaria de Saúde não se interessa mais por esses detalhes familiares. Os tempos mudaram…

O certo é que naquela época  acontecia de tudo naquelas paredes fechadas e não existiam celulares  para que fossem gravadas cenas “fora do padrão”, mas eu começava a pensar em virar jornalista e, de vez em quando, um saudosista contador de histórias.

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