Flávio Resende*
Há três anos, todo primeiro sábado do mês, pela manhã, é sagrado: ir, com meu grupo da Comunhão, ao Recanto das Emas, região a cerca de 30 quilômetros do centro de Brasília, prestar assistência a famílias em situação de vulnerabilidade social. Certo sábado, não foi diferente, com exceção do horário – fomos pela tarde.
Tudo caminhava bem até o momento em que me dirigi ao carro, sozinho, para pegar os itens que havíamos levado. Chegando lá, me deparei com um menininho descalço, de aproximadamente cinco anos, usando a lateral do meu carango como quadro de giz.
Contando assim, chega a ter graça, mas a minha reação de imediato foi parar, petrificado, sem demonstrar qualquer reação, aparentemente. Até que, quase trêmula, a minha voz saiu: “Meu amor, por que fez isso no carro do tio?” O garotinho, em resposta, apenas sorriu.
Fui embora para casa reflexivo e me questionando: “Abri mão do meu sábado para estar aqui, me doando, e por que isso aconteceu comigo?”
Não demorou muito para cair a ficha. Por qual motivo esta experiência ressoava tanto em mim? O que, de positivo, eu poderia tirar desta vivência?
Passado um tempo, a resposta veio. Até que ponto eu sustentava o meu propósito de estar ali, fazendo o que me dispus, quando aceitei o convite de participar do grupo?
Na verdade, entendi que o ocorrido poderia ser um sinal, ou um teste, para avaliar se o meu apego se sobrepunha à minha disponibilidade interna de me doar para o outro.
Me lembrei, imediatamente, de uma sessão de Coaching, em que relatava minha dificuldade de lidar com a imperfeição. Usamos como pano de fundo um dia em que, ao tirar o quadro da parede, em casa, me incomodei com o buraco que passou a ficar à vista; e do meu movimento natural de mandar consertar o estrago. Foi quando fui desafiado pela minha coach a deixar a parede imperfeita mesmo, observando o que isso ecoaria em mim.
Não vou mentir: foi difícil. Até que fui, lentamente, me acostumando com a ideia até torna-la parte orgânica do meu espaço.
A experiência do carro arranhado me ajudou a rememorar o meu esforço diário de ser uma pessoa melhor, mais paciente, mais amorosa, mais atenta e conectada comigo e com o outro. É verdade que o fato do personagem coadjuvante da história ser um moleque de cinco anos, cheio de vida e muito pobre, tornou a aceitação um pouco mais fácil. Talvez se fosse um marmanjo barbudo, eu agisse diferente, ou não.
No final das contas, assimilei que a estrada em direção à nossa reforma íntima é longa, intensa, solitária e, por vezes, imperfeita, com, inclusive, direito a paredes esburacadas e pinturas arranhadas. A propósito, como o incidente com o carro foi na porta do motorista (e decidi não arrumá-la, por enquanto), toda vez que abri-la, invariavelmente, me lembrarei do sorriso maroto do menino e do quanto ainda tenho que avançar na minha caminhada.
* Flávio Resende é jornalista, empresário, coach ontológico e aprendiz das coisas do sentir e de tudo mais que couber nesta vida.