Natália Brasil Dib e João Vitor de Oliveira Marques
Recentemente foi aprovado, pelo Plenário da Câmara dos Deputados, o PL nº 6064/2016, que pretende alterar a redação de alguns artigos do Decreto nº 70.235/1976 – responsável pela regulação do processo administrativo fiscal em âmbito federal. Dentre as alterações previstas, destaca-se aquela dirigida ao enunciado do parágrafo 4° do artigo 37, que passará a ter a seguinte redação: “No caso de empate nas deliberação das turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais, das câmaras, das suas turmas ou das turmas especiais, aplica-se a interpretação mais favorável ao contribuinte, podendo a Procuradoria da Fazenda Nacional ingressar com ação judicial na hipótese de decisão administrativa definitiva.”
Ou seja, nas hipóteses em que houver empate entre os conselheiros, o voto de qualidade (ou voto de minerva) será proferido em favor do contribuinte, reservando-se o direito de a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) ingressar no Judiciário para desconstituir a decisão emanada da própria União – por intermédio do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF. Contudo, ainda que pareça uma boa notícia, isso é enganoso.
Atualmente, os recursos administrativos interpostos pelos contribuintes são julgados pelo CARF. A estrutura judicante do CARF é composta por três seções de julgamento, separadas por matérias específicas, cada qual composta por quatro Câmaras, as quais possuem, cada uma, até duas turmas ordinárias de julgamento. Há, ainda, as turmas extraordinárias, responsáveis pelo julgamento de casos que envolvem valores menores. Além das turmas que compõem as chamadas “câmaras baixas”, os processos podem ser julgados pela Câmara Superior de Recursos Fiscais – CSRF – órgão especial do CARF – onde são decididas, ainda, pelo Pleno, as súmulas que vinculam o órgão e, mais recentemente, toda a administração fazendária (conforme autoriza o art. 75 do Anexo II da Portaria MF nº 343/2015).
Cada turma ordinária é composta de 08 julgadores e as turmas da CSRF, por sua vez, são compostas por 10 julgadores. A composição da turma é paritária, ou seja, cada turma é composta por metade de conselheiros advindos do quadro de auditores da Receita Federal do Brasil e metade de conselheiros escolhidos a partir da indicação feita pelas entidades de representação (CNC, CNI, dentre outros).
Pois bem, sendo a composição paritária, a presidência de cada Turma é reservada sempre ao representante da Fazenda Nacional, nos termos da redação original do artigo 12 do Anexo II do Regimento Interno do CARF. O resultado disso, por evidência, é que o Voto de Qualidade é sempre exercido pelo representante da Fazenda Nacional. Na prática, na maior parte dos casos em que é necessário o exercício do voto de qualidade, a Fazenda Nacional sai vencedora, como já alertou Cristiane Leme em levantamento das decisões emanadas do CARF no primeiro semestre de 2016, ao demonstrar, em números, que 98% dos casos são favoráveis a Fazenda – considerando-se os julgamentos parciais e sem análise de mérito.
Entretanto, a solução apresentada na Câmara de Deputados poderá causar efeitos ainda mais nefastos.
Primeiro porque o processo administrativo fiscal existe, no seu cerne, para que seja efetuado o controle de legalidade do ato administrativo de lançamento. Na prática, ao contribuinte é reservado o contencioso administrativo para que tanto nas Delegacias Regionais de Julgamento (1ª instância administrativa) quanto no CARF (2ª instância administrativa) seja possível reavaliar se a cobrança de tributo está ou não de acordo com a lei. Apenas isso. Ainda que haja respeitável doutrina que defenda a possibilidade de reconhecimento de inconstitucionalidade no processo administrativo, somos pela opinião de que deve ser realizado apenas o controle de legalidade do ato. E o controle de legalidade não possui lado, ou seja, não é a favor e nem contra o contribuinte, mas a favor da lei que vincula a todos. Não por outra razão que a doutrina é categórica ao afirmar que o princípio da legalidade objetiva determina que o processo administrativo “irá se desenvolver em estrita vinculação com a lei e para a finalidade de preservar a aplicação do sistema jurídico tributário.”
Segundo porque, acertadamente, parcela expressiva da doutrina defende que a constituição definitiva do crédito tributário se dá apenas com o fim de toda a discussão na esfera administrativa. Ou seja, se vencedor o contribuinte, resta afirmado o vício de legalidade da cobrança. Se perdedor, resta afirmado, pela instância administrativa, a constituição definitiva do crédito tributário. Na segunda hipótese, pelo princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, o contribuinte pode exercer o direito de pleitear que seja anulado o ato administrativo. A Fazenda Nacional, por sua vez, possuirá título líquido certo e exigível hábil ao ajuizamento da Execução Fiscal. Na primeira hipótese acima mencionada, contudo, o crédito tributário jamais poderá ser objeto de discussão, uma vez que no controle de legalidade – efetuado pela própria Administração Pública – verificou-se o vício do ato.
Nesse sentido, admitir, como pretende o PL 6064/2016, a possibilidade de que a decisão favorável possa ser objeto de judicialização no Poder Judiciário, desvirtua toda a sistemática de discussão do crédito tributário.
Sem embargo das críticas lançadas ao CARF, fato é que a origem da indicação dos conselheiros não vincula a decisão proferida pelo julgador – seja representante da Fazenda Nacional, seja representante dos contribuintes. E assim deve se manter a sistemática do processo administrativo tributário. O CARF e os conselheiros devem ter imparcialidade em seus julgamentos, sem defender um lado específico. A dificuldade denunciada por Cristiane Leme merece endereçamento diverso, que não pode ser a eleição, pela lei, de quem deve ganhar no caso de empate. Ainda que se admita que na dúvida a interpretação mais favorável seja a do contribuinte, é necessário rememorar que o ato administrativo possui presunção de legalidade, de modo que, na dúvida, não seria estranho admitir que o ato deve ser mantido, precipuamente pela possibilidade sempre existente de judicialização por parte dos contribuintes.
E se não bastasse, a pretendida alteração, além de ter potencial de enfraquecer o CARF enquanto instituição apta e competente ao controle de legalidade do ato administrativo, provocará, sem dúvida, o incremento considerável de demandas no nosso já abarrotado Poder Judiciário, considerando-se o levantamento realizado em 2018 pelo Conselho Nacional de Justiça que apontou que 39% das ações em andamento são execuções fiscais – historicamente apontado como o principal fator de morosidade da justiça. A Justificação anexada ao PL nº 6064/2016, ao mergulhar em uma interpretação meramente causalista, acaba por desconsiderar a prática jurídica e a complexidade que permeia o contencioso administrativo tributário.
Assim como a lenda do Cavalo de Troia, retratada na epopeia de Homero, a reforma arquitetada pela Câmara dos Deputados vem a galope – em regime de urgência – e traz consigo um inconveniente presente de grego: a intensificação de deslocamento das lides tributárias para o Judiciário e toda a insegurança jurídica daí decorrente.
Para evitar o mau agouro, preferimos manter as referências à mitologia romana. Minerva era cultuada como a deusa da sabedoria, e o voto de desempate deve seguir no mesmo sentido: não pode assumir um lado.
Autores:
Natália Brasil Dib. Doutoranda em Direito Econômico e Socioambiental junto a PUCPR, mesma instituição em que obteve o título de Mestre em Direito. Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Professora de direito e processo tributário. Advogada no escritório Marins Bertoldi Advogados.
João Vitor de Oliveira Marques. Pós-graduando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBET. É advogado no escritório Marins Bertoldi Advogados.