Em agosto de 1994, lancei, em Brasília, o jornal mensal Intelligentsia, tiragem de três mil exemplares. Durou até fevereiro do ano seguinte – sete edições, portanto. Era um tabloide de 16 páginas, parcialmente em cores, diagramado e ilustrado pelo artista plástico André Cerino, com fotografia do repórter fotográfico e ensaísta Ivaldo Cavalcante, e inteiramente redigido por mim. O primeiro número causou polêmica nos meios em que circulou, devido a uma coletânea de poemas eróticos, que intitulei DE TÃO AZUL SANGRA, ilustrados por André Cerino, que carregou no grafite. O trabalho foi um escândalo.
Em junho de 2018, sonhei com Roberto Carlos. Ele estava todo de branco e na minha casa, na 711 Sul, em Brasília, onde morei durante alguns anos, mas, no sonho, era uma casa enorme e arejada. Eu chegava e o encontrava lá, e alguém me dizia que Roberto queria falar comigo. No instante seguinte, como só nos sonhos acontece, ele e eu estávamos na biblioteca da casa, ampla, bem iluminada e aconchegante. Lembro que Roberto segurava uma folha de papel e me pediu autorização para trocar uma palavra de um poema meu, para ajustá-lo à melodia na qual estava trabalhando. “Sim, é claro, Roberto” – disse-lhe, e acordei.
Acordei com o livro DE TÃO AZUL SANGRA na cabeça e passei aquele dia e os dias seguintes trabalhando nisso. Reuni os poemas publicados no Intelligentsia, mais os poemas eróticos produzidos até julho de 2018, e publiquei, em dezembro daquele ano DE TÃO AZUL no Clube de Autores e na amazon.
No início dos anos 70, Roberto Carlos já era uma celebridade internacional, encantando o mundo com a melodia da sua voz, a Música Suave que ecoa na alma dos amantes. Em 1976, eu morava em Manaus e trabalhava no jornal A Notícia, de Andrade Netto, pai da Natacha Fink de Andrade, uma das grandes chefs brasileiras, profunda conhecedora dos sabores da Amazônia, e que deixou sua marca no Rio de Janeiro, onde foi proprietária do Espírito Santa, um dos restaurantes mais badalados da cidade, na Rua Almirante Alexandrino 264, bairro de Santa Teresa.
Pois bem, naquele ano, 1976, Roberto foi fazer um show em Manaus e a produção do jornal conseguiu entrevista exclusiva com ele, no antigo Hotel Amazonas, centro da cidade, onde Roberto estava hospedado.
Na época, eu assinava a coluna mensal No Mundo da Arte e era sempre eu que cobria matérias de cultura. O chefe de reportagem instruiu-me a perguntar ao Rei se ele usava, antes dos shows, meia de mulher como touca, para que sua cabeleira ficasse bem bacana. Esse assunto fora objeto de revista de fofoca. A pergunta era bizarra, mas satisfaria o suposto perfil dos leitores do jornal, que tendia ao sensacionalismo.
Tudo bem! O problema era outro: o único gravador do jornal estava falhando, e isso foi meu terror, porque se chegasse à redação sem a entrevista só me restaria fazer o que fiz tempos depois: demiti-me e fui para A Crítica, levado pelo senador Fábio Lucena, de quem fiquei amigo no Clube da Madrugada, sediado nos bares Caldeira e Nathalia, e que reunia jornalistas, artistas e apreciadores da enevoada Antarctica manauara.
Saí para fazer a entrevista, marcada para o fim daquela manhã. No hotel, fomos conduzidos, o fotógrafo e eu, ao corredor do apartamento do Rei, onde dois seguranças pediram para aguardamos ali. Roberto não nos recebeu no apartamento; acho que o apartamento era simples demais para as fotos. Ele me recebeu no corredor, e me deu a entrevista ali mesmo.
O Rei é um sujeito carismático. Ele me deixou à vontade e eu me senti como se fosse velho amigo dele. Perguntei-lhe sobre o negócio da meia e ele me respondeu numa boa. Nem me lembro mais o que ele disse. Eu estava de olho no gravador, preocupadíssimo com o funcionamento dele, vigiando para ver se o rolo de fita estava girando. Fazia perguntas ao Rei e voltava-me para o gravador, um velho gravador de tamanho médio. Eu costumava fazer entrevistas anotando rapidamente a resposta, mas a orientação que recebera era a de que eu teria que transcrever ipsis litteris as palavras do Roberto.
Mais tarde, na redação, ao degravar a entrevista, vi o quanto foi burocrática, a pior que fiz como jornalista, e logo com quem, o Rei Roberto Carlos, mas tudo bem! O jornal publicou a matéria, ninguém reclamou, e ainda restou uma fotografia com o Rei, por insistência do fotógrafo, de quem não lembro mais quem era.
Fui cobrir também o show do Roberto, e, naquele clima dos grandes shows, senti, na alma, o perfume que exalam muitas das canções do grande artista, algumas delas compostas com Erasmo Carlos. Certas gravações do Roberto nos remetem, em um salto quântico, à eternidade da juventude, quando transitar pelos labirintos de uma mulher é como montar a luz, tão azul que sangra.
Segue-se o que o contista e ensaísta Fernando Canto escreveu como prefácio da coletânea de 1994.
VERSOS PROFANOS
Nem fesceninos ao estilo bocageano, nem pornográfico à moda Boris Vian. Contudo, profanos são os novos versos do poeta Ray Cunha. Não no sentido antirreligioso – assim a poesia teria prosélitos fanáticos –, mas no sentido da irreverência, da violação, da transgressão do texto, em cuja tessitura surge o inopinado, que fragmenta, com certeza, a reação dos ouvidos suscetíveis.
Estes poemas, De tão azul sangra, evocam, invocam, enfocam a mulher, aliás, o sexo feminino; a afirmação do adolescente, o orgulho do adulto, ou, talvez, o fruto da observância do mundo mundano – experiência edipiana a penetrar em barreiras antes inacessíveis. Poemas que denotam a sensualidade e detonam-se em palavras lúbricas. Sutis, ás vezes, como em Bethania. Impolidas, como em Olhar para a mulher amada – um rasgo narcisista, um produto da consciência machista e desembocadura para o gozo psicológico do autor.
A apologia de Ray Cunha à mulher é feita, então, sem disfarces. Despojada da roupa ela se torna provedora de sentidos, manancial e matéria-prima ao fabricante de versos. Está ali nua, nuinha na sua forma ímpar de ser apenas mulher, vênus perscrutada pela oportuna fresta que faz a felicidade de um voyeur; deusa mítica em seu mistério, desvendada pelo arguto e fulminante olhar e pelo sensível olfato do poeta.
Bem poderia chamar-se Essa Copacabana triste mulher o conjunto desta obra. O melhor poema da coletânea traz o melhor do autor, embora o contraste do “triste” trace o “ideal” do jovem solitário, qualquer jovem solitário nas praias deste Brasil afora. Essa irreverência trata da socialização do sexo no entendimento paradoxal de que todos possam ser burgueses em bacanais tropicais regadas a coquetéis afrodisíacos, num tempo hedonista que ficou há muito nos salões dos palacetes romanos. É forma compacta de abarcar o mundo. É válido. É poesia. Nela está o sol, o azul do mar no verão. Pois aí o azul que sangra não é o azul do céu. É o azul açoitado pela relação geográfica e íntima entre o sol e o mar. É o azul afetado pela natureza do gasoso (as nuvens) no espelho sangrado do mar. Mar que sangra, que se esvai, que beija a praia de Copacabana e salga o corpo nu da mulher desejada, da mulher que brilha com a clivagem dos grãos de areia e à noite vai para a cama gemer seu gozo e se sangrar de mar de Copacabana. Enorme, a cama de Copacabana.
Nostálgico e terrível é romper o laço em Um cheiro de madrugada. Neste poema Ray Cunha instiga um sentido amargo sobre o que se convenciona chamar de amor. É um trabalho sincero, diria, onde o conteúdo está exposto para o leitor atento; onde nada mais se precisa dizer, pois que a lembrança adquire a possibilidade de entrega a outros caminhos, nos quais existem outros remédios para os males da paixão. É simples, realista.
Ray Cunha ironiza a relação poética entre a morte e a poesia. Morrer na mesa de um bar é produto do inconsciente etilizado. Ser salvo, porém, é dormir com a princesa e metáfora-tônica de um anti-valor, concessão do sono ao acordar de sopetão de um pesadelo borgeano: sensação esquisita, estapafúrdia. Morte e poesia andando juntas, porque o trágico pode ser frenético, fétido e cômico – dura realidade! – exatamente na hora irônica do enforcamento.
Poemas como Sessenta e nove I e II trazem sobretudo o rústico, o rude, o seco mal lixado. São versos extraídos de uma realidade obstinadamente crua, ausentes de recursos semânticos mais elaborados, e duros como a pretensa e voraz virilidade do poeta. Nem por isso ele peca.
Se transgredir é a virtude do recurso, doces são as circunscrições colocadas em Ah! Se tu fosses minha e nos dois poemas sem títulos que se entrepõem a ele. Chegam á trazer à tona a ingenuidade do poeta, que verdadeiramente ama sua musa de Parnaso, líricos como uma aquarela a Belle-Époque.
Não se pode deixar de enfocar o trato poético-erótico-libidinosos dos classificados de Acompanhantes. O autor ousa de várias maneiras. E coopta o leitor a acompanha-lo em aventuras sexomaníacas de pleno envolvimento. Comunicação, mídia impressa, espurcícia? Não. Mistura de elementos cuidadosamente colocados sob a arquitetura da realidade atual, ossatura forte dos arrabaldes das megalópoles. Assim é a estrutura desse poema. Real. Firme e transparente. Enfoque de uma sociedade periférica desprezada pela tradicional e hipócrita sociedade burguesa. É retrato da nova cultura urbana, nascida, infelizmente, ainda da miséria, da perda de status, de poder aquisitivo e que se torna antepasto para qualquer Sade pós-moderno, certamente. Instigante, claro e azul, o poema indica água fervendo, páprica picante, poesia nova, e acima de tudo coragem de inovar pela forma e revolucionar pelo conteúdo da ideia.
Esta é a marca poética de Ray Cunha, que, sob o céu nas nuvens, descobre que o azul sangra como a vagina menstruada de uma nereida de qualquer gangue dos subúrbios brasileiros.
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