*Marcos Machado
Enganaram o pobre, de novo, e nem foi com muito esforço, nem por falta de aviso. Ficou sem picanha, sem cervejinha, sem gordurinha na farinha e, agora, até sem ovo, e eu nem me comovo. Faz a gente lembrar do bordão da personagem interpretado pela atriz Nádia Carvalho, a dona Santinha Pureza, da Escolinha do Professor Raimundo: “Mas eu gostcho!”.
Parece que o pobre gosta de ser enganado, tem uma propensão explicita a acreditar na mentira, ou inverdade ou, como dizem, interpretar equivocadamente a metáfora. Isso não é de agora. Esse adestramento para se encantar com o improvável vem de há muito tempo, mais de 20 anos…
Foi há muito tempo, e agora estão preparando outro conto do paco com a mesma roupagem. Naquela época, bastou mudar o rótulo na prateleira social e vender como ascensão o que, na prática, era maquiagem estatística. Disseram ao pobre que ele era “classe média”. O truque? Uma manipulação contábil: redefiniram os parâmetros da pirâmide social para que o mesmo salário mínimo parecesse um upgrade.
Durante os anos 2000, quando a retórica do crescimento inclusivo começou a pegar, o governo brasileiro definiu e popularizou a ideia de que ganhando de R$ 291 a R$ 1.019 por mês uma pessoa já poderia ser considerada “classe média” no Brasil. Sim, você leu certo: com menos de mil reais no bolso, o sujeito já podia sonhar com a viagem de avião (internacional, de preferência), a escola particular, o carro zero quilômetro, a TV de 60 polegadas… Só esqueceram de avisar que o sonho seria financiado em infinitas prestações com juros de dois dígitos.
Venderam o acesso ao crédito como poder de compra, quando é mero mecanismo de endividamento que amplia e agrava a vulnerabilidade econômica. O indivíduo passou a ter acesso a bens que antes estavam fora do seu alcance sem, no entanto, ter aumento real de renda. Era pura ilusão. Sem aumento de renda, não há poder efetivo de compra.
Tudo se sustenta num castelo de papel, literalmente. Papel de fatura, papel de carnê, papel de propaganda enganosa
Ou seja: deram ao pobre um cartão de crédito e disseram “vá, compre!”, mas esqueceram de mencionar que, depois da festa, viria a ressaca, e ela teria nome: juros, parcelamento eterno e inadimplência. Segundo dados do Serasa, mais de 70 milhões de brasileiros estavam endividados em 2024. Muitos deles, curiosamente, classificados como “classe média”.
O crédito fácil não promoveu inclusão, mas endividamento e redução da qualidade de vida, porque as famílias passaram a comprometer cada vez maior parte da renda, ou do dinheiro disponível para alimentos e outras necessidades, para pagar prestações. Ninguém saiu da pobreza, ao contrário, afundou mais ainda nela.
A mágica da mobilidade social à brasileira é isso: faz parecer que o pobre subiu na vida quando, na verdade, só desceu menos do que de costume. Tudo se sustenta num castelo de papel, literalmente. Papel de fatura, papel de carnê, papel de propaganda enganosa.
O consumo de bens duráveis não se deu por uma redistribuição de renda, mas por uma expansão de crédito. Era uma encenação em que se fingia que o pobre tinha poder de compra e, na realidade, ele só tinha dívidas a pagar.
O que se viu foi a ilusão da inclusão: o pobre foi ao shopping, entrou na loja, comprou a geladeira, o celular novo e até o carro, tudo financiado, mas continuava morando em áreas periféricas, com acesso precário a saúde, educação e transporte. Era a classe média com as mesmas ausências de sempre, só que agora com parcelas mensais.
Substituiram a promessa de ascensão pela realidade do endividamento
Por que insistem em empurrar essa narrativa? A resposta pode ser cínica, mas realista: porque um pobre que se acha de classe média consome mais, reclama menos e vota com mais esperança, ou com mais medo de perder o pouco que julga ter conquistado. É mero engodo.
O que parecia ser um salto social foi apenas um deslocamento estatístico. Substituiram a promessa de ascensão pela realidade do endividamento. O pobre pode comprar o carro, sim, mas ele ficou parado na garagem porque o dinheiro não dava para o combustível, para o seguro, para o IPVA, para a manutenção… Era pobre, mas com carro na garagem e menos comida na mesa.
Não só o pobre foi enganado, mas toda a parcela da sociedade que aplaude a performance da pseudo prosperidade sem perceber que a cortina está rasgada, e por trás dela, o que se vê é o mesmo de sempre: miséria disfarçada, e um monte de gente tentando se equilibrar na corda bamba do carnê.
Como já cantava o Bezerra da Silva, malandro é malandro, mané é mané
(Podes crer que é), e o pobre vai cair no conto do paco, de novo. É o destino, e ele ‘gostcha’!*Jornalista profissional diplomado, editor do portal Do Plenário, escritor, psicanalista, analista sensorial, enófilo, adesguiano, consultor de conjunturas e cidadão brasileiro protegido (ou não) pela Constituição Brasileira