JOÃO VITOR OLIVEIRA MARQUES
Malgrado as consecutivas investidas da Administração Pública Federal contra os incentivos fiscais atrelados ao Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT)[1], o Superior Tribunal de Justiça fez valer o princípio da legalidade e declarou o direito das empresas de efetuar a dedução do dobro dos valores despendidos na alimentação dos seus funcionários – quer sejam com serviços próprios ou terceirizados, quer sejam com vale-alimentação –, diretamente do lucro tributável pelo imposto de renda, gerando reflexos no seu respectivo adicional.
E a decisão da Corte Superior não poderia ser diferente. Relativamente às pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, a regulação da sistemática de apuração do referido incentivo fiscal foi levada a termo pela Lei nº 6.231/76, que assim dispõe em seu artigo 1º:
Art. 1º As pessoas jurídicas poderão deduzir, do lucro tributável para fins do imposto sobre a renda o dobro das despesas comprovadamente realizadas no período base, em programas de alimentação do trabalhador, previamente aprovados pelo Ministério do Trabalho na forma em que dispuser o Regulamento desta Lei. (Vide Decreto-Lei nº 2.397, de 1987) (Vide Lei nº 9.532, de 1997)
§ 1º A dedução a que se refere o caput deste artigo não poderá exceder em cada exercício financeiro, isoladamente, a 5% (cinco por cento) e cumulativamente com a dedução de que trata a Lei nº 6.297, de 15 de dezembro de 1975, a 10% (dez por cento) do lucro tributável.
§ 2º As despesas não deduzidas no exercício financeiro correspondente poderão ser transferidas para dedução nos dois exercícios financeiros subsequentes.
A norma supracitada, plenamente vigente, é de clareza ímpar: as pessoas jurídicas poderão deduzir o dobro das despesas realizadas no programa de alimentação, diretamente do lucro tributável pelo imposto de renda, desde que não excedam a 4% do IRPJ devido em cada exercício financeiro[2] – caso em que as despesas excedentes serão “acumuladas” para dedução nos dois anos subsequentes.
Desse modo, em sendo a dedução realizada diretamente sobre o lucro tributável da pessoa jurídica, o incentivo fiscal acaba por refletir tanto na parcela do imposto de renda (apurado à alíquota de 15%), quanto no respectivo adicional (apurado à alíquota de 10%).
Acontece que a clareza da legislação não parece ter sido suficiente. Desde 1991, a Administração Pública Federal editou uma série de atos infralegais que, sob o pretexto de regulamentar a concessão do incentivo fiscal, pretenderam transfigurar o método de cálculo previsto em lei e reduzir o benefício a ser auferido pelos contribuintes.
A primeira tentativa de limitação foi experimentada mediante a edição do Decreto nº 5/91. Caso se considere a regra constante do artigo 1º do aludido diploma, o valor passível de dedução estaria limitado a 15% do somatório das despesas de alimentação, valor esse que seria descontado do imposto de renda efetivamente devido – e não do lucro tributável[3].
A segunda tentativa foi promovida pela Instrução Normativa SRF nº 267/02. Em seu artigo 2º, a instrução fazendária replicou a limitação anterior e foi além, fixando o valor unitário das refeições custeadas em R$ 1,99. Para calcular o valor dedutível do imposto de renda devido, o empregador deveria multiplicar o número de refeições fornecidas pelo valor unitário e, sobre o resultado, aplicar a alíquota de 15%.
Dadas essas circunstâncias, é de se presumir que até mesmo os menos afeitos à ciência do direito tributário estejam questionando, de plano, a ilegalidade de tais atos normativos em face da Lei nº 6.231/76. Isso porque normas emanadas do Poder Executivo – como decretos e instruções normativas – não podem extrapolar as disposições das normas primárias que pretendem regulamentar, sobretudo em matéria tributária.
A feitura normativa, no Estado Democrático de Direito, encontra seus limites no princípio constitucional da legalidade, insculpido nos artigos 5º, II e 150, I da Constituição Federal[4]. Em idêntico sentido, reza o artigo 99 do Código Tributário Nacional, no âmbito infraconstitucional, que “o conteúdo e o alcance dos decretos restringem-se aos das leis em função das quais sejam expedidos”.
Amparados nos fundamentos mencionados, as empresas aderentes do PAT passaram a questionar as limitações no judiciário. Após vitórias episódicas nos Tribunais Regionais Federais – especialmente quanto à ilegalidade da indigitada instrução normativa –, a discussão culminou no Superior Tribunal de Justiça.
A 2ª Turma da Corte Superior, ao julgar o Recurso Especial nº 1.754.668/RS, decidiu, por unanimidade, dar provimento ao recurso interposto pelo contribuinte contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Por oportuno, vejamos os seguintes excertos da ementa publicada em 11/03/2019:
“IMPOSTO DE RENDA. PROGRAMA DE ALIMENTAÇÃO DO TRABALHADOR – PAT. INCENTIVO FISCAL. LIMITAÇÃO. PORTARIA INTERMINISTERIAL 326/77 E INSTRUÇÃO NORMATIVA 267/02. ILEGALIDADE. PRECEDENTES. ART. 1º DA LEI 6.321/76. FORMA DE CÁLCULO. DEDUÇÃO SOBRE O LUCRO TRIBUTÁVEL DA EMPRESA E NÃO SOBRE O IMPOSTO DE RENDA DEVIDO. REFLEXO NO CÁLCULO DO ADICIONAL DO IMPOSTO DE RENDA. AFASTAMENTO DA VEDAÇÃO CONSTANTE DO ART. 3º, §4º, DA LEI 9.249/95. RECURSO ESPECIAL DO CONTRIBUINTE PROVIDO.
2. A Portaria Interministerial 326/77 e a Instrução Normativa 267/02, ao fixarem custos máximos para as refeições individuais como condição ao gozo do incentivo fiscal previsto na Lei 6.321/76, violaram o princípio da legalidade, porque extrapolaram os limites do poder regulamentar. Precedentes do STJ.
3. Os benefícios instituídos pelas Leis 6.297/75 e 6.321/76 aplicam-se ao adicional do Imposto de Renda da seguinte maneira: deduz-se as correspondentes despesas do lucro da empresa, chegando-se ao lucro real, sobre o qual deverá ser calculado o adicional. Precedentes do extinto TFR e do STJ. […]” (STJ, REsp 1754668/RS, Relator Ministro Herman Benjamin, T2 – Segunda Turma, DJe 11/03/2019)
Tendo em conta o estabelecimento da tese no Superior Tribunal de Justiça, convém às empresas que aderiram ao Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) pleitear a restituição ou compensação[5] dos valores indevidamente recolhidos a maior nos últimos 5 (cinco) anos, bem como o imediato afastamento das limitações impostas pelo Decreto nº 5/91 e Instrução Normativa SRF nº 267/02.
JOÃO VITOR OLIVEIRA MARQUES. Advogado do Departamento Contencioso Tributário do escritório Marins Bertoldi.
[1] O Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) é um programa governamental de adesão voluntária, que busca estimular o empregador a fornecer alimentação nutricionalmente adequada aos trabalhadores, por meio da isenção de encargos sociais (contribuição para o FGTS e contribuição previdenciária) e da concessão de incentivos fiscais.
[2] Registre-se que a dedução das despesas restou limitada a 4% do imposto devido após a edição da Lei nº 9.352/97, vide o seu artigo 5º: “A dedução do imposto de renda relativa aos incentivos fiscais previstos no art. 1º da Lei nº 6.321, de 14 de abril de 1976, no art. 26 da Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991, e no inciso I do art. 4º da Lei nº 8.661, de 1993, não poderá exceder, quando considerados isoladamente, a quatro por cento do imposto de renda devido, observado o disposto no § 4º do art. 3º da Lei nº 9.249, de 1995”.
[3] Vale mencionar que a sistemática enunciada no Decreto nº 5/91 foi incorporada pelo novo Regulamento do Imposto de Renda – RIR (Decreto nº 9.580/18),vide a Seção I – Do Programa de Alimentação do Trabalhador, localizada no Capítulo I do Título XV – Das Deduções do Imposto Sobre a Renda.
[4] CF/88. Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[…]
II – Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
CF/88. Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – Exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;
[…][5] As regras atinentes à compensação de crédito relativo a tributo administrado pela Receita Federal estão dispostas no artigo 73 da Lei nº 9.430/96 eInstrução Normativa RFB nº 1.717/17.