Marcos Machado
Factoide: notícia forjada com o intuito de atrair a atenção da opinião pública, que se aceita como verdadeira em consequência de sua repetida divulgação pela imprensa.
Pois é, quem se lembra do impeachment do presidente Fernando Collor? Muita gente acha que foi por corrupção, ou pelo tal “crime de responsabilidade”, mas tudo é relativo e circunstancial neste Brasil da improbabilidade. Na verdade, Fernando sucumbiu ao sistema. Ele era um tipo de Bolsonaro dos anos 1980, mais refinado e menos desbocado, o caçador de marajás, que bagunçou a harmonia entre os poderes e peitou as máfias que enriqueciam seus compadres à custa do dinheiro público farto. Como seu análogo moderno, foi um “problema” inesperado.
Collor era aquele que prometeu com seu discurso moralista varrer a corrupção, mas fez o que não se perdoa em Brasília: mexeu onde não devia. Cutucou os conchavos. Tentou peitar o sistema, e o sistema, como já diria o filósofo capitão Nascimento em Tropa de Elite, “é foda”; e o Fernando era muito novo, cheio de ideias, mas o Brasil é um caso a ser esmiuçado. Por mais que se tente fazê-lo potência, ele sempre dá um jeito de retroceder.
Sem entrar na discussão de isso, ou aquilo, de todas as ‘cagadas’ que fez, desde a nomeação de um ministério fraco e trapalhão, ao confisco que destruiu a vida de milhares de brasileiros, entre outras coisas, Fernando foi um marco na saída do país do submundo do subdesenvolvimento. Logo depois veio o Itamar Franco com Fernando Henrique Cardoso, o Plano Real e o resto a gente sabe…
Voltando à analogia inicial, Fernando, o caçador de marajás, peitou o sistema que reinava e nadava de braçada. A máfia do Congresso Nacional e seus anões do orçamento; a máfia da imprensa, com seus editores que enriqueciam da noite para o dia sem ganhar na loteria; a máfia das contratadas do governo etc. O Brasil era um emaranhado de cosas nostras, e ele entrou com os pés nos peitos dos malandros.
Afinal, dizem as más línguas que a famigerada proclamação da república (golpe), também foi por causa de chifres
O resultado? Um Fiat Elba plantado na garagem virou símbolo da moralidade seletiva da elite política. Era necessário um bode expiatório, e o escolhido foi o caçador de marajás que ousou desafiar as regras não escritas da governabilidade à brasileira: roube, mas não atrapalhe os outros a roubarem.
Houve até uma história de infidelidade familiar como pivô da crise que pôs fim ao governo Collor, o que se tornou uma recorrência nacional. Afinal, dizem as más línguas que a famigerada proclamação da república (golpe), também foi por causa de chifres. Agora, será que o país se tornará refém das escapadinhas fugazes?
Naquele tempo, do impeachment de Collor, não havia rede social, não havia internet nos moldes atuais. As ‘redes sociais’ eram as filas de orelhão, de lotéricas de bancos. Sem elas, as redes, a ‘verdade’ era o que as manchetes dos jornais dissessem, ou o que o âncora do noticiário da tevê esbravejasse. Bastaram duas dúzias de caras pintadas fazendo alarde em conluio com a oposição, e pronto.
Depois de Fernando, expurgado exemplarmente, o sistema seguiu em frente. Veio Itamar, com sua gravatinha torta, entregando o país a Fernando Henrique e ao Plano Real. Vieram os anos de festa, de prosperidade relativa e escândalos garantidos, mas tudo no controle, na lógica da pizza bem assada no forno das instituições.
Agora, mais de 30 anos depois, Collor dança outra vez. De novo ele aparece como réu, como símbolo, como bode. Curiosamente, os outros envolvidos, os de verdade, os operadores do esquema, já foram libertados, perdoados, absolvidos ou simplesmente esquecidos. O que era Lava Jato virou lenda urbana. O que era condenação virou nota de rodapé. O que era indignação virou silêncio conveniente. O chefe do esquema… Bem, melhor deixar para lá.
Percebeu em que momento ele surge? Como o factoide ajudou a aplacar os verdadeiros escândalos?
Collor, mais uma vez, é o personagem sacrificado para que o sistema lave suas mãos com água suja. O mesmo sistema que jamais perdoa quem tenta enfrentá-lo sem entrar no jogo. Foi escolhido personagem do factoide.
*Jornalista profissional diplomado, editor do portal Do Plenário, escritor, psicanalista, cientista político ocasional autoproclamado, analista sensorial, enófilo, adesguiano, consultor de conjunturas e cidadão brasileiro protegido (ou não) pela Constituição Brasileira
PS: “bode expiatório” é alguém que é escolhido arbitrariamente para levar (sozinho) a culpa de uma calamidade, crime ou qualquer evento negativo