Ray Cunha
Os dias amanhecem como fotografias sépias e as mulheres trajam casacos e já não saem de sandálias e roupas que lhes deixam grande parte da sua pele maravilhosa iluminar o planeta. Costuma, agora, fazer 19 graus centígrados em torno das 8 horas, quando, às vezes, atravesso as ruas da manhã, curtindo tudo o que me ofertam. Ao cruzar com uma mulher muito bonita, agradeço a Deus, porque é bom presságio. As manhãs são sempre como as rosas, recendem ao perfume redentor de mulheres que acabaram de sair do banho e presenteiam o mundo com seu esplendor.
Curto as manhãs de outono como todas as manhãs, da primavera, do verão e do inverno, porque as joias que guardei no meu relicário são feitas dos sons das manhãs, risos de crianças, marulhar longínquo, quem sabe da ilha de Mosqueiro, ou Salinas, ou Copacabana, ou Ipanema. Meu relicário é do tamanho do meu coração, e contém uma cidade inteira, que pode ser Brasília, Belém, Rio de Janeiro, ou Macapá.
Se Macapá, um vendaval sacode minha alma, porque a simples palavra Macapá me inunda de endorfina. Somos velhos amantes. Macapá é tão azul que mais azul só os poemas da Alcinéa Maria Cavalcante. E ainda mais azul, o primeiro beijo, que me ensinou a voar. O Rio de Janeiro vive no meu relicário como uma portuguesinha da Ilha do Governador ensaiando Miolo de Pão, peça que o meu amigo Luiz Loyola escreveu sobre a família dele e guardou na gaveta mais preciosa.
Tudo isso me ocorre porque é o último dia do verão. Brasília é como a mulher amada. Vou explorando seus labirintos com paciência e gentileza, na esperança de que ela abra para mim todas as suas portas secretas; de vez em quando descubro minas de diamante e rubi nas suas luzes.
E se logo no início do outono está tão bom, imagino quando chegarem o inverno, as manhãs de neblina, de cerração, de frentes frias, as noites de ventania, as mulheres lindas, mais misteriosas do que nunca, deixando à mostra apenas suas bocas pintadas de vermelho, o corpo da mulher amada sob o edredom, o levantar-se às 5 horas, o café 3 Corações, gourmet, e o retomar da aventura ao computador.
Com três xícaras de café com leite em pó e duas fatias de pão com passas a manhã fica ainda mais cintilante, porque já é magnífica por ser outono. Assim, passam-se os dias, como folhas que caem, suavemente, sustentadas pela brisa, até o chão. À noite, no nicho da minha biblioteca, sonho novamente com a manhã, e com a tarde, e com os aromas que senti vindos de planetas que gravitam em volta da minha alma.
A vida é isto! – penso. Sim, viver é voar, como estou fazendo agora. A vida cabe toda, agora, como imensa rosa vermelha, inexpugnável na sua fragilidade, eterna na sua fugacidade, invencível na sua beleza. Quero ficar grávido da manhã, do outono e das rosas; só assim escreverei palavras azuis como rubis.
O outono, pois, está lá fora. As noites são frias e os dias nublados. Ando pelo apartamento, aliso a lombada dos livros na estante, olho pela janela e vejo na pracinha defronte ao meu bloco alguém conduzindo dois cachorros, daqueles que parecem tapurus, e logo desaparecem. A manhã volta ao silêncio e à solidão.
Nos últimos dias de verão chove, às vezes, de madrugada. O quarto é silencioso como um templo. Só ouvimos o pinicar da chuva fina na vidraça. Venta na praça e as árvores defronte ao apartamento curvam-se, agitadas – lembram cabelos de mulher. Levanto-me, vou ao banheiro e depois à cozinha, onde preparo café Três Corações, gourmet, que tomo com leite em pó e um sanduíche de pão francês com queijo prato. Retorno ao quarto. Minha gata já se levantou também. Lemos um sutra e meditamos. Depois, pomo-nos a ver a chuva, ambos que somos de Macapá, a terra das águas. Daí a pouco o som da chuva e do vento se mistura a murmúrios, e gemidos.
Parou de chover. A manhã avança, nublada. Creio que as chuvas, nesta época do ano, ocorrem porque frentes frias vindas da Antarctica alcançam o Planalto Central, onde encontram o chão em chamas, se condensam e caem. A manhã, então, escoa como um rio de planície, lento, rumo a outro rio, ou ao mar. Sei que o dia seguirá assim, até que as luzes da noite cintilem como pinceladas de Van Gogh.
Meu amigo Fernando Canto aniversaria no outono. Acredito que as grandes amizades já existam antes mesmo que as pessoas se conheçam. Um dos momentos mais importantes da nossa amizade ocorreu certa noite, em Belém. Eu sentia vaga melancolia e deslizava lentamente para aquela região vazia, pegajosa, negra e sem fundo, da alma, quando surgiu o Fernando Canto. Não precisei lhe dizer nada. Ele me levou para o bar do seu tio, que nos recebeu como príncipes e nos serviu gim-tônica inglês, e logo montei no dorso de uma libélula.
Desconfio que o Fernando Canto seja um dos anjos destacados para cuidar de mim. Temos a mesma idade, mas, nessas décadas todas do nosso convívio ele é sempre mais sensato e me corrige para que eu não caia da sela do Leão de Asas que cavalgo e que voa na velocidade da luz. Sempre que nos encontramos, mergulhamos na dimensão da intensidade, de modo que, mesmo à distância, é como se nos encontrássemos todos os dias.
Amigos, e amigas, são criaturas maravilhosas; vão nos buscar no fundo do rio, quando já não respiramos e vemos, perto, o Aqueronte. Desde sempre, vivo cercado de anjos. Às vezes, cenas do passado passam céleres, como em um filme, por mim, e vejo que, há muito tempo, eu já deveria ter virado pó, mas sempre ouvi o farfalhar de asas e senti que alguém me erguia da vertigem que antecede a perda dos sentidos, e sei de pronto que ainda preciso cumprir minha tarefa, neste plano, e só então me integrar na luz.
A vida é a própria luz; só temos que nos deixar seguir como a brisa, igual esta manhã, que vai se esvaindo, lentamente, como o pulsar da música de Mozart. Amar é o melhor de tudo; é como ouvir a brisa, os passarinhos, o riso das crianças, o sussurro da mulher amada, as rosas, o timbre do éter.