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Márcio Souza revelou a loucura do Inferno Verde

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Ray Cunha

Comecei minha carreira jornalística como repórter policial no Jornal do Commercio de Manaus, em 1975, aos 21 anos de idade. No ano seguinte, fui para A Notícia, como repórter de geral e uma coluna dominical, No Mundo da Arte. Foi quando conheci Márcio Souza. Ele já era, aos 29 anos, o rei de Manaus. Dirigia o Teatro Experimental do Sesc/Amazonas (Tesc) e apresentava suas peças em um dos melhores teatros do mundo, o Amazonas, como A Paixão de AjuricabaAs Folias do LátexJurupari – A Guerra dos Sexos e a cantata Dessana, Dessana.

Estive com ele três vezes. Todas elas, marcantes. A primeira aconteceu no Amarelinho, um bar que ficava na Avenida Getúlio Vargas, no centro de Manaus. Uma manhã, quase na hora do almoço, encontravam-se à mesa o Márcio Souza e a trupe que o acompanhava sempre, e eu. Naquele dia, eu não tinha dinheiro sequer para almoçar, mas bebi várias rodadas da cerveja que rolava na mesa. No fim, alguém propôs rachar a conta. O Márcio Souza percebeu meu constrangimento e pagou minha parte. Nunca esqueci esse gesto dele.

Passado um tempo, fiz uma entrevista com ele. Alguns dias depois encontramo-nos fortuitamente. Aí ele me advertiu para um erro na entrevista, alguma coisa que coloquei equivocadamente, pois fora uma entrevista curta, para a coluna; dessas que a gente anota alguma coisa, mas usa mais a memória. Disse-lhe que iria publicar uma errata. Aí ele me disse uma coisa que nunca mais esqueci: não se preocupe em ficar dando explicação para erros; ouça com mais atenção e confirme, se for preciso.

Tempos depois, Márcio Souza estourou com Galvez – O Imperador do Acre (1976). Correu, entre escritores, que Márcio Souza teria comprado Galvez, apócrifo, em um sebo na Europa e publicado como se fosse dele. Sintomático. É fato que muita gente fica puta da vida quando alguém faz sucesso.

Acredito que haja três escritores amazônidas emblemáticos: os paraenses Dalcídio Jurandir e Benedicto Monteiro, e Márcio Souza. Contudo, o mais visceral é Márcio Souza, que está para a Amazônia como o polonês Joseph Conrad está para a África, com seu romance Coração das TrevasMad Maria (1980), romance de Márcio Souza, é a loucura do Inferno Verde.

Mad Maria trata da construção da ferrovia Madeira-Mamoré, ligando Porto Velho a Guajará-Mirim, com 366 quilômetro, no atual estado de Rondônia, entre 1907 e 1912, projeto liderado pelo empreendedor americano Percival Farquhar. Os americanos conseguiram construir o Canal do Panamá, que funciona até hoje, mas não a Madeira-Mamoré.

A ideia da ferrovia é de 1846. O engenheiro boliviano José Augustin Palácios mostrou às autoridades do país que a saída da Bolívia para o mar poderia ser pela bacia do Amazonas, até o Atlântico. Em 1851, o governo dos Estados Unidos, interessado no comércio com a região, contratou o tenente Lardner Gibbon para estudar a viabilidade do empreendimento. Em 1852, Gibbon concluiu o trajeto Bolívia-Belém, descendo os rios Guaporé, Mamoré, Madeira e Amazonas, demoraria 59 dias, contra os 180 dias pelo Pacífico, contornando o Cabo Horn. Em 1903, o Brasil compra da Bolívia o atual estado do Acre, em pleno ciclo da borracha.

Durante a Segunda Guerra Mundial, a Madeira-Mamoré foi estratégica para garantir borracha para os Estados Unidos. Em 10 de julho de 1972, após 60 anos de atividades, a estrada de ferro foi desativada e substituída pelas BR-425 e BR-364, que ligam Porto Velho a Guajará-Mirim. Voltou a operar em 1981, em trecho de 7 quilômetros, apenas para fins turísticos, até 2000.

A trama de Mad Maria se passa em três meses, nos quais a Amazônia é desnudada, é-lhe tirado o coração e entregue ao diabo. Os milhares de trabalhadores que mourejaram nela, vindos de todo o mundo, enfrentaram 19 cataratas, 227 milhas de pântanos e desfiladeiros, inumeráveis cobras e escorpiões, e malária. Três mil e 600 homens morreram, 30 mil foram hospitalizados e uma avalanche de dólares foi despejada na selva.

Disse The New York Tikmes Book Review: “A ironia amarga de Márcio Souza germina diretamente do coração das trevas”, e a Folha de S.Paulo: “Epopéia às avessas, romance notável de um Márcio Souza crescentemente mestre de seu ofício e transbordante de talento, Mad Maria é um faroeste à medida brasileira: sem ilusões, vigilante e pontiagudo como uma flecha na noite escura”.

A TV Globo e o Canal Futura produziram e exibiram a minissérie baseada em Mad Maria, de 25 de janeiro a 25 de março de 2005, em 35 capítulos, roteirizada por Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Ricardo Waddington, gravada nas cidades de Porto Velho e Guajará-Mirim, no estado de Rondônia, com as cenas finais rodadas na cidade de Passa Quatro, em Minas Gerais. Os papeis principais ficaram com: Ana Paula Arósio, Fábio Assunção, Tony Ramos, Antônio Fagundes, Cláudia Raia, Priscila Fantin e Cássia Kiss e Fidelis Baniwa.

O roteiro de Benedito Ruy Barbosa ficou engavetado durante 20 anos. Em 1980, o diretor artístico da Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, pediu a Benedito Ruy Barbosa que transformasse o Mad Maria em uma minissérie. Benedito Ruy Barbosa trabalhou durante um ano no roteiro, mas a emissora o engavetou. A minissérie custou 12 milhões de reais.

As primeiras gravações foram feitas em Abunã (onde nasceu minha mãe, Marina Pereira Silva Cunha) e Porto Velho, em Rondônia. Em Abunã, foram reconstruídos seis quilômetros de trilhos que estavam soterrados por barro e mato, e reformada a Mad Maria, a locomotiva que abriu a estrada de ferro.

O jornalista, dramaturgo, editor, roteirista e romancista Márcio Gonçalves Bentes de Souza, membro da Academia Amazonense de Letras (AAL), nasceu em Manaus, em 4 de março 1946, e morreu na cidade que tanto amava, na madrugada de 12 de agosto de 2024, aos 78 anos. Segundo sua família, Márcio Souza sentiu dor no peito e morreu de parada cardiorrespiratória.

O escritor foi velado, no momento em que escrevia estas linhas, no Centro Cultural Palácio Rio Negro, e foi sepultado no Cemitério São João Batista.

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