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quinta-feira, outubro 31, 2024

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Márcio Souza revelou a loucura do Inferno Verde

Ray Cunha

Comecei minha carreira jornalística como repórter policial no Jornal do Commercio de Manaus, em 1975, aos 21 anos de idade. No ano seguinte, fui para A Notícia, como repórter de geral e uma coluna dominical, No Mundo da Arte. Foi quando conheci Márcio Souza. Ele já era, aos 29 anos, o rei de Manaus. Dirigia o Teatro Experimental do Sesc/Amazonas (Tesc) e apresentava suas peças em um dos melhores teatros do mundo, o Amazonas, como A Paixão de AjuricabaAs Folias do LátexJurupari – A Guerra dos Sexos e a cantata Dessana, Dessana.

Estive com ele três vezes. Todas elas, marcantes. A primeira aconteceu no Amarelinho, um bar que ficava na Avenida Getúlio Vargas, no centro de Manaus. Uma manhã, quase na hora do almoço, encontravam-se à mesa o Márcio Souza e a trupe que o acompanhava sempre, e eu. Naquele dia, eu não tinha dinheiro sequer para almoçar, mas bebi várias rodadas da cerveja que rolava na mesa. No fim, alguém propôs rachar a conta. O Márcio Souza percebeu meu constrangimento e pagou minha parte. Nunca esqueci esse gesto dele.

Passado um tempo, fiz uma entrevista com ele. Alguns dias depois encontramo-nos fortuitamente. Aí ele me advertiu para um erro na entrevista, alguma coisa que coloquei equivocadamente, pois fora uma entrevista curta, para a coluna; dessas que a gente anota alguma coisa, mas usa mais a memória. Disse-lhe que iria publicar uma errata. Aí ele me disse uma coisa que nunca mais esqueci: não se preocupe em ficar dando explicação para erros; ouça com mais atenção e confirme, se for preciso.

Tempos depois, Márcio Souza estourou com Galvez – O Imperador do Acre (1976). Correu, entre escritores, que Márcio Souza teria comprado Galvez, apócrifo, em um sebo na Europa e publicado como se fosse dele. Sintomático. É fato que muita gente fica puta da vida quando alguém faz sucesso.

Acredito que haja três escritores amazônidas emblemáticos: os paraenses Dalcídio Jurandir e Benedicto Monteiro, e Márcio Souza. Contudo, o mais visceral é Márcio Souza, que está para a Amazônia como o polonês Joseph Conrad está para a África, com seu romance Coração das TrevasMad Maria (1980), romance de Márcio Souza, é a loucura do Inferno Verde.

Mad Maria trata da construção da ferrovia Madeira-Mamoré, ligando Porto Velho a Guajará-Mirim, com 366 quilômetro, no atual estado de Rondônia, entre 1907 e 1912, projeto liderado pelo empreendedor americano Percival Farquhar. Os americanos conseguiram construir o Canal do Panamá, que funciona até hoje, mas não a Madeira-Mamoré.

A ideia da ferrovia é de 1846. O engenheiro boliviano José Augustin Palácios mostrou às autoridades do país que a saída da Bolívia para o mar poderia ser pela bacia do Amazonas, até o Atlântico. Em 1851, o governo dos Estados Unidos, interessado no comércio com a região, contratou o tenente Lardner Gibbon para estudar a viabilidade do empreendimento. Em 1852, Gibbon concluiu o trajeto Bolívia-Belém, descendo os rios Guaporé, Mamoré, Madeira e Amazonas, demoraria 59 dias, contra os 180 dias pelo Pacífico, contornando o Cabo Horn. Em 1903, o Brasil compra da Bolívia o atual estado do Acre, em pleno ciclo da borracha.

Durante a Segunda Guerra Mundial, a Madeira-Mamoré foi estratégica para garantir borracha para os Estados Unidos. Em 10 de julho de 1972, após 60 anos de atividades, a estrada de ferro foi desativada e substituída pelas BR-425 e BR-364, que ligam Porto Velho a Guajará-Mirim. Voltou a operar em 1981, em trecho de 7 quilômetros, apenas para fins turísticos, até 2000.

A trama de Mad Maria se passa em três meses, nos quais a Amazônia é desnudada, é-lhe tirado o coração e entregue ao diabo. Os milhares de trabalhadores que mourejaram nela, vindos de todo o mundo, enfrentaram 19 cataratas, 227 milhas de pântanos e desfiladeiros, inumeráveis cobras e escorpiões, e malária. Três mil e 600 homens morreram, 30 mil foram hospitalizados e uma avalanche de dólares foi despejada na selva.

Disse The New York Tikmes Book Review: “A ironia amarga de Márcio Souza germina diretamente do coração das trevas”, e a Folha de S.Paulo: “Epopéia às avessas, romance notável de um Márcio Souza crescentemente mestre de seu ofício e transbordante de talento, Mad Maria é um faroeste à medida brasileira: sem ilusões, vigilante e pontiagudo como uma flecha na noite escura”.

A TV Globo e o Canal Futura produziram e exibiram a minissérie baseada em Mad Maria, de 25 de janeiro a 25 de março de 2005, em 35 capítulos, roteirizada por Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Ricardo Waddington, gravada nas cidades de Porto Velho e Guajará-Mirim, no estado de Rondônia, com as cenas finais rodadas na cidade de Passa Quatro, em Minas Gerais. Os papeis principais ficaram com: Ana Paula Arósio, Fábio Assunção, Tony Ramos, Antônio Fagundes, Cláudia Raia, Priscila Fantin e Cássia Kiss e Fidelis Baniwa.

O roteiro de Benedito Ruy Barbosa ficou engavetado durante 20 anos. Em 1980, o diretor artístico da Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, pediu a Benedito Ruy Barbosa que transformasse o Mad Maria em uma minissérie. Benedito Ruy Barbosa trabalhou durante um ano no roteiro, mas a emissora o engavetou. A minissérie custou 12 milhões de reais.

As primeiras gravações foram feitas em Abunã (onde nasceu minha mãe, Marina Pereira Silva Cunha) e Porto Velho, em Rondônia. Em Abunã, foram reconstruídos seis quilômetros de trilhos que estavam soterrados por barro e mato, e reformada a Mad Maria, a locomotiva que abriu a estrada de ferro.

O jornalista, dramaturgo, editor, roteirista e romancista Márcio Gonçalves Bentes de Souza, membro da Academia Amazonense de Letras (AAL), nasceu em Manaus, em 4 de março 1946, e morreu na cidade que tanto amava, na madrugada de 12 de agosto de 2024, aos 78 anos. Segundo sua família, Márcio Souza sentiu dor no peito e morreu de parada cardiorrespiratória.

O escritor foi velado, no momento em que escrevia estas linhas, no Centro Cultural Palácio Rio Negro, e foi sepultado no Cemitério São João Batista.

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