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Brasília e a viúva Porcina: a que foi sem nunca ter sido

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*Marcos Machado

Brasília completa, nesta segunda-feira, 21 de abril, seus respeitáveis 65 anos de fundação e, incrivelmente, ainda paira sobre a capital federal um manto de desinformação, lendas urbanas e narrativas recicladas. Pouca gente sabe, de fato, como e por que ela surgiu. Talvez porque Brasília seja um pouco como a viúva Porcina, aquela personagem interpretada pela maravilhosa Regina Duarte, em Roque Santeiro: a que foi sem nunca ter sido. Inventaram tanta coisa a seu respeito que se confunde o real com o fictício. Fato é fato, boato é boato, e sobre isso a gente conversa depois.

A ideia de transferir a capital do país para o interior não nasceu com Juscelino, vem de muito antes, desde o Império, como estratégia geopolítica para proteger o centro de poder de possíveis invasões, que na época ocorriam, claro, pelo litoral. Era arriscado manter o coração administrativo da nação vulnerável às caravelas e à uma capitulação quase imediata. .

Foi Juscelino Kubitschek, nos anos 1950, que decidiu tirar o plano do papel, ou melhor, do rabisco no guardanapo de boteco. A construção de Brasília foi justificada por uma mistura de argumentos: interiorização do desenvolvimento, integração nacional, proteção territorial e, claro, muito marketing. É aqui que entra Dom Bosco, ou melhor, o “sonho” de Dom Bosco, que supostamente previa a nova capital. Pois bem: esse sonho nunca existiu. Não há registro. Nenhum registro. Já confessaram, inclusive, que a tal profecia foi uma jogada de comunicação para angariar o apoio da Igreja Católica, que ainda ditava os rumos da moral e da opinião pública. Se o santo sonhou, ninguém anotou, mas se a Igreja apoiava, era vontade de Deus.

Projetada por dois comunistas assumidos, Lucio Costa e Oscar Niemeyer, Brasília materializa um ideal utópico de convivência harmônica entre as classes sociais. Um misto de comuna soviética com modernismo tropical. Quem não entende seus espaços amplos, seus pilotis ou sua famosa “setorização” está justamente diante da proposta original: uma cidade planejada para ser coletiva. Os vazios urbanos não são um erro de projeto, são parte da utopia. Por exemplo: os grandes gramados entre as quadras 700 do Plano Piloto deveriam ter se transformado em hortas comunitárias, canteiros coletivos, uma espécie de quintal partilhado. Pena que a coletividade deu lugar ao individualismo.

Brasília tem seu próprio autoritarismo estético. Como toda boa utopia que se preze, veio acompanhada de bizarrices

Os prédios suspensos sobre pilotis, por sua vez, visavam eliminar barreiras entre o público e o privado. Um convite à livre circulação (em tese, claro). Os comércios das quadras foram pensados para atender localmente os moradores: padarias, quitandas, farmácias a poucos passos de casa. Na prática? Nem sempre. Na Asa Norte, por exemplo, uma quadra ainda guarda esse espírito, mas o plano original foi diluído pela especulação e pela vida real. Afinal, uma coisa é o que se quer, outra coisa é o que o povo quer.

Se você já esteve no Kremlin, talvez consiga entender a lógica monumental da Esplanada dos Ministérios e da Praça dos Três Poderes. Lembre-se que estávamos no auge da ‘Guerra Fria’, e talvez compreenda a dinâmica dos subterrâneos em concreto armado, como na Praça dos Três Poderes, Rodoviária e até o estádio de futebol, antigo, não o recém construído a um custo bilionário para o contribuinte. Um elefante no meio da sala. Quem não se lembra do fiasco da implosão do antigo? Depois da detonação de toneladas de explosivos ele permanecia lá, em pé, com alguns arranhões, apenas. Era à prova de bombas.

Brasília tem seu próprio autoritarismo estético. Como toda boa utopia que se preze, veio acompanhada de bizarrices: entre os projetos descartados, houve até proposta de construir um único prédio gigante que condensaria toda a cidade, uma Brasília vertical, distópica e absurdamente claustrofóbica. Felizmente, o rabisco de Lucio Costa em um guardanapo foi o que vingou.

Outra bizarrice, e esta é atual, foi batizarem aquele túnel (mergulhão) no centro de Taguatinga com um nome totalmente alheio à cidade. Nunca esteve sequer na região administrativa, não fez nada por Brasília e seu povo, nem para o País, ou para o mundo. Os boleiros de mente míope que me desculpem, mas há várias personalidades locais que mereceriam a homenagem. Aquela ponte no Lago Sul, também. Afinal, quem foi? O que fez?

Se o problema for evitar ciumeira ideológica, então em votaria em Winston Churchill. Acredite, ele fez muito mais por Brasília. É graças a ele, que não só a França, mas todo o mundo, não fala alemão, mas essa é outra história.

Ah! O Lago Paranoá, construído para servir de reserva de água, aplacar os efeitos da seca recorrente em boa parte do ano e atender ao lazer gratuito da população, sem distinção social, acabou virando extensão dos quintais dos mais ricos. O acesso ao espelho d’água já foi mais democrático, como pensado inicialmente, mas hoje até o governo impõe restrições absurdas. O povo? ‘O povo é só um detalhe’…

Hoje, Brasília abriga todas as culturas do Brasil. Todas, mas cada uma em seu quadrado. A capital uniu o país geograficamente, mas não o integrou social ou culturalmente. Fragmentação ainda é a regra. Seria um excelente tema para teses de mestrado: uma capital que concentra tudo, mas não integra nada.

Brasília, pela Constituição, não pode ser municipalizada, não tem cidades. Inclusive, o conceito Britânico pós-Guerra é diferente

Favelas? Sim, elas existiram, e como! Só no Plano Piloto, até o fim dos anos 1980, havia 64 áreas de ocupação informal. Isso mesmo. A cidade da ordem e do progresso tinha sua face oculta, formada por migrantes, e seus descententes, que vieram erguer a capital. Eles se casaram, tiveram filhos, netos. Seus filhos e netos também se casaram e seguiram o curso natural da urbanização e, como diz o ditado, “quem casa quer casa”. Moradia, porém, sempre foi escassa e cara, daí a favelização.

Foi no governo do coronel Aimé Lamaison que começaram os primeiros projetos de remoção das invasões, ou favelas, e construção ou ampliação das regiões administrativas, e não “cidades-satélites”, já que Brasília, pela Constituição, não pode ser municipalizada, não tem cidades. Inclusive, o conceito Britânico pós-Guerra é diferente em quase tudo, exceto pelo fato de essas cidades estarem ao redor do núcleo urbano principal.

A lei que cria a estrutura administrativa do Distrito Federal especifica bem o termo região administrativa. Em lugar nenhum, memorial, projeto ou legislação pertinente há qualquer referência à “cidade-satélite”, isso foi só mais uma invencionice pós-candanga, e eu tenho minhas suspeitas de quem teria sido o autor.

A proposta das regiões administrativas e ampliação urbana ao redor do Plano Piloto fazem parte da proposta original. Ninguém inventou nada para exploração política. Está tudo registrado.

Joaquim Roriz intensificou esse processo, de expansão urbana e descentralização populacional, com políticas habitacionais que, até hoje, dividem opiniões. Alguns dizem que ele “inchou” Brasília (narrativa da oposição); outros reconhecem que ele apenas formalizou o que já era inevitável. Roriz não inchou nada, ao contrário, desinchou. Ele promoveu o que poderia se chamar hoje de uma “drenagem linfática” na área nobre da capital. Se não fosse por essas medidas, hoje o morador abastado do Sudoeste abriria a janela e daria de cara com um amontoado de barracos, como acontece nas “nobres” ladeiras do Rio, mas essa é, também, outra história.

Aqui, um adendo: Para quem ainda repete como papagaio do boteco da 110 Sul, as estatísticas estão disponíveis para pesquisa. Você pode estudar, ou cantar a ladainha dos intelectuais sazonais, aqueles das noites de sextas-feiras movidos a chope e quibe cru. O fluxo migratório para a capital ocorreu até o fim dos anos 1970 e foi caindo, pasmem, gradativamente nos anos 1980. As pessoas migram, principalmente, em busca de trabalho, não de moradia.

Brasília ainda não tem uma cultura consolidada, e tudo bem. Sessenta e cinco anos é pouco tempo para isso. Roma não foi feita em um dia, e Brasília não vai virar São João Del-Rei com o tempo em que se prepara um macarrão instantâneo. O que ela tem, e de sobra, é verde: é a capital com maior área arborizada per capita do país. No período chuvoso, é uma aquarela viva. No transporte público… bem, esse é um projeto de ficção científica ineficiente. A cidade foi feita para carros, e ponto. Não à toa, Brasília lidera o consumo de combustível per capita no Brasil. O pedestre, aqui, é um sobrevivente.

Ah, e só para reforçar: Brasília não é um estado, é o Distrito Federal. “Distrito”, no caso, não é nome próprio, mas uma categoria territorial e administrativa dentro da federação brasileira. Estados, territórios (RIP) e o DF. Se você não lembra disso, talvez seja hora de rever o livrinho de Geografia da quinta série.

Brasília é amada por uns, odiada por outros. Como toda boa ficção nacional, desperta paixões e repulsa. Eu, pessoalmente, gosto do que ela representa, mas sei que pode melhorar. Sempre pode. Com isso, vou encerrando por aqui. Porque Brasília, afinal, é como a viúva Porcina: foi, sem nunca ter sido, mas continua ali, firme e se reinventando todos os dias.

*Jornalista profissional diplomado, editor do portal Do Plenário, escritor, psicanalista, cientista político ocasional, analista sensorial, enófilo, adesguiano, consultor de conjunturas e cidadão brasileiro protegido (ou não) pela Constituição Brasileira

(PS: não gosto de chope, nem de quibe cru)

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