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A mulher ante a violência, a covardia e a loucura dos homens

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Ray Cunha

Existem escritores icônicos que amamos só pelo o que eles são, por declarações suas, seu modo de vida e até pela sua sensualidade, neste caso, feminina. Clarice Lispector é uma delas. É a Jessica Rabit da literatura universal. Giorgio de Chirico a pintou em Roma. O óleo retratando Clarisse é toda Jessica, personagem de desenho animado criada por Robert Zemeckis, que se inspirou nas atrizes Veronica Lake e Rita Hayworth. Léa Seydoux também lembra Jessica.

Clarice Lispector em óleo de Giorgio Chirico. Jessica Rabbit

Clarice escrevia em português, mas nasceu na Ucrânia, em 10 de dezembro de 1920.

– Naquela terra eu literalmente nunca pisei: fui carregada de colo – disse, sobre a Ucrânia.

Morreu no Rio de Janeiro, na véspera de completar 57 anos, em 9 de dezembro de 1977, de câncer de ovário. Deixou dois filhos. Romancista, contista, ensaísta, jornalista, frequenta, hoje, um clube exclusivo: a prateleira dos monstros sagrados da literatura universal.

Era judia. Sua família migrou fugindo de extermínio em massa. Foi educada no Recife/PE, onde chegou com dois anos de idade. Aos oito anos, sua mãe faleceu. Aos 14, transferiu-se, com o pai e as duas irmãs para o Rio de Janeiro, onde seu pai faleceu, em 1940. Graduou-se em Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro, então Universidade do Brasil, mas paralelamente começou a trabalhar como tradutora, escritora e jornalista.

Estreou como romancista aos 24 anos, com Perto do Coração Selvagem, que contém a sinopse dos seus futuros romances: a mulher diante da violência, da covardia e da loucura dos homens.

Em 23 de janeiro de 1943, casa-se com Maury Gurgel Valente e um ano depois muda-se, com o marido, então vice-cônsul, para Belém do Pará, onde se hospedam no Central Hotel, ao lado do Teatro da Paz, durante seis meses, após os quais Maury assume o consulado brasileiro em Nápoles, Itália. O casal passa alguns dias no Rio de Janeiro, de onde parte para Nápoles, onde morou de 1944 a 1946, e Clarisse ajudou soldados feridos na guerra no hospital norte-americano, como voluntária do Serviço de Saúde da FEB – Força Expedicionária Brasileira.

“Isso aqui é lindo. É uma cidade suja e desordenada, como se o principal fosse o mar, as pessoas, as coisas. As pessoas parecem morar provisoriamente. E tudo aqui tem uma cor esmaecida, mas não como se tivesse um véu por cima; são as verdadeiras cores. Um edifício novo aqui tem um ar brutal. Às vezes eu me sinto ótima; às vezes simplesmente não vejo nada, não sinto nada. Estou lendo em italiano porque é o jeito. A palavra mais bonita da língua italiana é gioia, embora alegria também seja bonito. Estamos num apartamento grande, com todos do consulado que são ótimas pessoas; mas nunca precisei de ótimas pessoas. Mas, enfim, por enquanto nada há a fazer” – narra, em carta.

“Estou trabalhando no hospital americano, com os brasileiros. Visito diariamente todos os doentes, dou o que eles precisam, converso, discuto com a administração pedindo coisas, enfim sou formidável. Vou lá todas as manhãs e quando sou obrigada a faltar fico aborrecida, tanto os doentes já me esperam, tanto eu mesma tenho saudade deles.”

Clarice era bela. Explosivamente bela. “Eu estava em Nápoles andando pela rua com meu marido. E um homem disse bem alto para outro, ele queria que eu ouvisse: “É com mulheres como esta que contamos para reconstruir a Itália”. Não reconstruí a Itália. Tentei reconstruir minha casa, reconstruir meus filhos e a mim. Não consegui. No entanto o italiano não estava fazendo galanteio, falava sério. Deus, fazei-me reconstruir pelo menos uma flor. Nem mesmo uma orquídea, uma flor que se apanha no campo. Sim, mas tenho um segredo: preciso reconstruir com urgência das mais urgentes, hoje mesmo, agora mesmo. Nesse instante. Não posso dizer o que é”.

Na França, chamaram-na de “princesa da língua portuguesa”.

Vivia viajando, por conta da profissão do seu marido, mas adorava o Brasil: “Não sinto nenhum prazer em viajar. O mundo inteiro é levemente tedioso, eu acho. O que importa na vida é estar perto de quem amamos. Essa é a grande verdade do mundo. E, se existe um lugar especialmente simpático, é o Brasil”.

Em 1959, Clarice separa-se de Maury, que fica na Europa, e se fixa permanentemente, com seus filhos, no Rio de Janeiro, no Leme, onde, na praia, há uma estátua sua de bronze. Em 14 de setembro de 1966, Clarice dorme, deixando seu cigarro aceso. O incêndio quase a mata.

Em 1975, participa do I Congresso Mundial de Bruxaria, em Bogotá, Colômbia, no qual apresenta o conto O ovo e a galinha. Retorna ao Rio com a aura de “a grande bruxa da literatura brasileira”. Declara seu amigo Otto Lara Resende sobre sua obra: “Não se trata de literatura, mas de bruxaria”.

Clarice dominava sete idiomas: português, inglês, francês, espanhol, hebraico, iídiche e russo, mas fez traduções somente do inglês, francês e espanhol. Contudo, a obra de Clarice foi muito mais traduzida: mais de 200 traduções para mais de 10 idiomas. Só A Hora da Estrela e A Paixão segundo G. H. tiveram 22 traduções, cada; Perto do Coração Selvagem, 18, Laços de Família, 16, e Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, 15. A partir da década de 1980, Clarice tem nova tradução praticamente todo ano.

Pouco tempo após a publicação do romance A Hora da Estrela, Clarice é hospitalizada com câncer de ovário em metástase e não resiste. É sepultada no Cemitério Israelita do Caju, no Rio de Janeiro, no dia 11 de dezembro de 1977. A judia ucraniana, nordestina e carioca, engrandeceu a língua portuguesa como nenhuma outra mulher, pois a voz das suas personagens continua ecoando, solitária, mas destemida como as rosas.

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