Ray Cunha
Tenho sido um estranho no ninho. Não tive também gurus que me guiassem por caminhos seguros na trilha que escolhi seguir: a de escritor. Até hoje, quando alguém sabe que procuro me levantar às 4 horas para escrever me olha com pena, como se eu fosse um miserável. E quando sabem que eu nunca ganhei dinheiro para valer fazendo isso, aí é que me olham como se eu fosse um condenado. Obviamente não ligo, pois o prazer de me encontrar com a madrugada, com o silêncio, com os sons que só ouvimos por meio dos tímpanos espirituais, esse prazer é simplesmente incrível.
Desde cedo percebi que sou outsider. Poderia traduzir essa palavra como estranho, mas outsider, em inglês, é mais específica: significa um indivíduo que não pertence a um grupo determinado, e no turfe se trata de um cavalo com fracas possibilidades de vencer. É o meu caso. Minha igreja tem sido eu mesmo; eu oficio a missa, como a hóstia e bebo o vinho. E sempre soube que minhas possibilidades de me tornar um escritor conhecido são remotas. É claro que todos nós, escritores, desejamos ardentemente pagar as contas com dinheiro proveniente da venda de nossos livros, mas alguns devem esquecer isso e se ater apenas a curtir sua vida do modo como der.
Isso eu sempre fiz, sempre curto adoidado, e, também, tenho estoicismo suficiente para não reclamar. Se alguém me ouvir gemer é porque estou à morte. Quando criança, não morri por pouco contaminado por ameba. Comecei a beber cedo. Aos 14 anos chegava a dormir na rua, desmaiado de tanta cachaça. Só não morri de tanto beber porque encontrei um anjo que me salvou. Hoje, não bebo mais; nem Cerpinha enevoada no sétimo andar dos hotéis cinco estrelas. Em 13 de novembro de 2019, sofri um infarto, mas consegui chegar andando ao hospital e logo depois desmaiei. Agora, estou com covid.
Por isso mergulhei ainda mais nos livros. Acabei de ler O Outsider – Minha Vida na Intriga, de Frederick Forsyth. É o tipo do sujeito que teve toda a sua vida conduzida para a literatura. Ele fez todo tipo de coisa que achou importante para ele mesmo, e, no seu caso, havia seu pai, que o apoiava.
Não recebi esse tipo de apoio direto do meu pai, porque meu pai era ainda mais outsider do que eu, mas recebi dele coragem, aquele tipo de coragem que chega a ser ingênua, recebi disciplina para trabalhar e responsabilidade para procurar, de alguma forma, defender os mais fracos. Meu pai também lia muito. Aos 17 anos, peguei a estrada.
Era o ano de 1972, em Macapá. Até então, só saíra da cidade para ir a Belém do Pará, que me pareceu outro planeta, que descobrimos de repente e percebemos que não é um sonho, que estamos lá mesmo. Eu era um adolescente inquieto e não aparecia ninguém para me apoiar na minha tentativa inicial de me tornar escritor. Eu recebi estímulos, mas de colegas na mesa dos bares, na mesma situação que eu. Assim, um dia, peguei um barco, fui para Belém, e, de lá, para o Rio de Janeiro.
A estrada durou dez anos. Rio, Buenos Aires, Santarém, Manaus, Rio Branco, Belém novamente, onde, estimulado por um anjo, me graduei em Jornalismo pela Universidade Federal do Pará, em 1987, doze anos depois de ter começado nessa profissão como repórter policial no Jornal do Commercio de Manaus.
Na estrada, encontrei muita gente interessante. Quando somos jovens – jovens são belos e imortais – todos querem ajudar, especialmente as mulheres. Assim, fui amado por deusas e retribuí esse privilégio com amor mais intenso ainda. Também encontrei homens que me apontaram algumas portas, que me ensinaram alguns truques e me ajudaram a entender uma coisa: que não somos outsider, ninguém é outsider, que outsider é apenas um conceito alheio, e que ser outsider é chegar ao poder de oficiar a própria missa. Então, em vez de outsider, nos sentimos cidadãos do mundo.
Em Macapá latejam minhas raízes, mas hoje meu portal para mergulhar fundo na cidade é o escritor Fernando Canto, da mesma idade que eu e que também trilha a estrada azul. Comemos e bebemos como sátiros e conversamos dias a fio, e rimos demais. A dama azul, Alcinéa Maria Cavalcante, não quis mais me ver, recolheu-se em meio a suas flores e se confundiu com as flores. Também as mulheres que povoaram minha adolescência sumiram; só deixaram um rastro de perfume.
Assim, sinto-me mais e mais outsider. Às vezes, percebo vultos se movendo perto de mim; sei que são mortos à minha espera, ou estão aqui para me ajudarem, para me apontarem a direção a tomar, o rumo que devo seguir, na minha nova profissão de terapeuta, monge taoísta, iniciado em Medicina Tradicional Chinesa. Quanto ao jornalismo, faço como todo mundo; hoje, a comunicação social é pessoal e global ao mesmo tempo; barões da mídia, dos balcões de negócios, das negociatas, da política, se encontram no beco das máfias, inclusive nos negócios políticos do narcotráfico.
Forsyth viveu da intriga internacional. Foi jornalista antes de descobrir que tinha nas mãos material extraordinário para criar histórias de primeira categoria, e foi o que fez, mas teve a sorte de encontrar, aparentemente de forma fortuita, um editor. Forsyth é inglês e cedo aprendeu com fluência francês e alemão, e depois espanhol e russo, e esteve em muitos lugares interessantes e conheceu muita gente influente, na hora certa. Isso fez dele um outsider de sucesso.
Mas todos nós somos o que somos e temos o que conseguimos obter. Sou outsider apenas porque sou o padre que oficia a própria missa, e isso é bom, muito bom, pois há aquele tipo de outsider que quer ser escritor, mas não recebeu dos deuses as antenas que conectam com o astral.
Cada um de nós somos únicos e todos somos outsider para o outro, a menos que acolhamos o outro como irmão, como um só, vindos da mesma origem, e que brancos, negros, índios, mulatos, cafuzos e mamelucos somos feitos da mesma substância, como nas ruas de Macapá. Acho que a universalidade que há em mim vem daí, das ruas de Macapá.
Devorando um galinho de jambu e um camarão pitu numa cuia de tacacá criada por Olivar Cunha e batendo papo com Fernando Canto é que curto o outsider que vive em mim, capaz de sentir o perfume dos jasmineiros chorando nos dias tórridos de Macapá, de ouvir sons que vêm do Caribe e vislumbrar uma negra de olhos verdes sob um vestido de seda branca – elas surgem assim, para mim, e tudo o que tenho a fazer e pô-las nas minhas histórias.
Posso ser o cavalo em que ninguém irá apostar, que participa da corrida para fazer número, que está destinado a produzir sêmen, ou virar charque, mas ainda estou no páreo.