*Marcos Machado
Falta saúde, faltam professores, falta pavimentação, mas nunca falta festa. O Brasil, país do “jeitinho”, onde o improviso virou política pública, segue à risca um manual ancestral: “Dê ao povo diversão e ele esquecerá a dor de dente e o asfalto derretido”. A receita não é nova, remonta à Roma Antiga. Os imperadores romanos já sabiam que bastava encher os olhos e o estômago para esvaziar as críticas. Chamavam de panem et circenses (pão e circo) e funcionava. Hoje, porém, a fórmula foi atualizada: sem pão, só o circo, mesmo.
Em uma cidade com déficit hospitalar crônico, a prioridade é clara: show com DJ famoso e cachê milionário, enquanto a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) está sem médico, sem gaze, sem analgésico, sem dignidade.
A lógica é cruel e elegante: se o povo está distraído, não protesta. Se há fogos de artifício, ninguém repara nos buracos nas ruas, no mato que cresce, nas calçadas quebradas, na falta de atendimento na saúde. A anestesia coletiva tem trilha sonora e iluminação cênica bancada com dinheiro público.
Os gregos, com toda sua reflexão sobre polis e ética, certamente corariam de vergonha. Aristóteles defendia que a finalidade do Estado era promover o bem comum. Hoje, o bem comum virou camarote VIP. Platão falava da caverna e das sombras. Talvez tenha previsto o telão de LED com verba pública numa praça de uma cidade esburacada. Enquanto Sócrates dizia “conhece-te a ti mesmo”, o brasileiro conhece, mesmo, é o próximo artista da grade de programação da festa da cidade.
É em nome da cultura, claro. Porque se você criticar, é contra a cultura popular, é elitista, é chato. Afinal, como ousa questionar a festa? “Cultura é investimento”, dizem — e de fato é, mas nos bolsos de artistas, muitos sem talento, e de empresários envolvidos na estrutura do evento. O pior é que nem é cultura, de fato. É entretenimento. Distorceram até o conceito para facilitar a enganação.
Mentem, ainda, dizendo que é de graça. De graça uma ova, o dinheiro do contribuinte banca a festa, enriquece artista de talento duvidoso e sabe-se lá quem mais. O cidadão paga antes, paga caro, e “vai de graça”. Isso, quando não é repasse pela Lei Rouanet, porque aí o Mané vai pagar dobrado. O dinheiro dele banca a festa e depois ele tem que pagar ingresso pra assistir ao show que ele patrocinou… É sacanagem à brasileira.
O artista entra, o povo paga, e o buraco fica. Os cachês artísticos são pagos com estardalhaço, tudo sob o manto da legalidade e da “promoção turística”. Enquanto isso, o contribuinte que teve o pneu estourado num buraco digno da cratera lunar, é aconselhado a “dançar que passa”. A administração pública, que não tem verba para tampar os buracos, parece sempre ter verba para “atrair visitantes”.
Quando a crítica surge, a resposta é previsível: “A festa gera renda, aquece o comércio, traz alegria”. Sim, como um analgésico: alivia a dor momentaneamente, mas não cura a doença.
No final das contas, quem é o palhaço? Aquele que paga a conta sem perguntar. O cidadão que vota e esquece, que adoece e espera, que reclama no WhatsApp, mas dança na praça. Aquele que, sem perceber, se transformou no protagonista involuntário do grande espetáculo da incompetência pública.
O Brasil é o país do futuro, dizem. Pena que o presente esteja tão atolado em lama, som e luz. Esse futuro nunca chega. Afinal, amanhã é sempre amanhã.
*Jornalista profissional diplomado, editor do portal Do Plenário, escritor, psicanalista, cientista político ocasional, analista sensorial, enófilo, adesguiano, consultor de conjunturas e cidadão brasileiro protegido (ou não) pela Constituição Brasileira