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Contra o cidadão de bem

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Elton Duarte Batalha

Com menos de seis meses de existência do governo Bolsonaro, percebe-se o acirramento de ânimos entre os dois polos que se contrapuseram durante o processo eleitoral. O possível arrefecimento do clima social não se observou até o momento e as declarações de ambas as partes permitem reflexão mais ampla sobre um elemento que tem aparecido com frequência no debate público ultimamente: o cidadão de bem.

A existência da figura referida evidencia dois aspectos do panorama social que merecem observação cuidadosa. Primeiramente, denota suposta pureza moral de parte dos membros que compõem a comunidade. Ademais, traz como pressuposto em seu bojo a existência de alguém que ocuparia lugar diametralmente oposto no espectro moral, uma vez que materializaria o mal. Essa postura maniqueísta obviamente produz efeitos na convivência da comunidade.

O primeiro elemento apontado traduz uma concepção de ser humano que, historicamente, sempre causou sérios problemas. A ideia de que a perfeição, sobretudo do ponto de vista moral, está ao alcance das pessoas permite o aparecimento de determinados fanatismos com base na certeza da correção das ideias e atitudes daquele que não reconhece em si os defeitos que caracterizam quaisquer indivíduos. A ausência de humildade na perspectiva pessoal produz efeitos marcadamente deletérios no campo político, pois faz com que não se reconheça no interlocutor alguém que porte a mesma legitimidade para discussão do futuro da nação. A perda de qualidade democrática no convívio social torna-se, então, cristalina.

O maniqueísmo, segundo aspecto apontado, surge como decorrência natural do primeiro. A divisão do país com base na dicotomia nós/eles trazida ao debate público pelo ex-presidente Lula e mantida por Bolsonaro, atual mandatário máximo do país, demonstra a visão de mundo que os une. Os dois extremos políticos, ainda que não reconheçam tal fato abertamente, são elementos que apresentam relação de mútua implicação, pois a existência de um explica a criação e manutenção do outro. O fenômeno bolsonarista na política brasileira é fruto dos desmandos do petismo na gestão nacional. A resposta de parte da sociedade aos abusos práticos e retóricos de uma ideologia conduziram o país à adoção da visão do polo oposto, concretizando a insatisfação em um país em que conceitos como democracia e república ainda não foram compreendidos totalmente pela sociedade. Em certo sentido, a utilização da internet e das redes sociais tende a aprofundar as certezas pessoais à medida que o algoritmo leva o indivíduo a manter contato com cosmovisões similares, poupando o cidadão da fricção produzida pela opinião divergente e impedindo a análise mais profunda de questões políticas e existenciais.

Há, enfim, de ser erradicada a figura do cidadão de bem do discurso político nacional. A crença na existência desse ser moralmente superior em nada contribui ao crescimento do indivíduo e da sociedade, pois exclui a humildade como pressuposto necessário para qualquer reflexão pessoal e diálogo comunitário. A incapacidade de ver o mal em si é típico de um momento de crescente narcisismo do ser humano, característica que impede a transformação necessária para o enriquecimento da existência, com efeitos nocivos evidentes sobre o aprimoramento das instituições nacionais.

Elton Duarte Batalha é professor de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, advogado e doutor em Direito pela USP.

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