Desde a criação do sistema ONU, em 1945, o Estado brasileiro realiza o discurso de abertura da Assembleia Geral. Esse direito foi conquistado pela capacidade mediadora do chefe da delegação brasileira na organização: Osvaldo Euclides de Souza Aranha. Como presidente da primeira sessão, Aranha costurou a votação em torno da criação do Estado de Israel. Desde então, a diplomacia brasileira emprega um perfil argumentativo, notadamente, direcionado para os demais países membros da organização, fundamentado em um mínimo denominador comum: a defesa da autodeterminação, dos direitos humanos, da solução pacífica dos conflitos, da não intervenção.
Nesses quase 75 anos de existência das Nações Unidas, um número vasto de discursos foi realizado pelo Brasil, reafirmando esses quatro valores políticos e estruturando as linhas de força da política externa brasileira. Entretanto, a diplomacia brasileira nunca foi monolítica ou imutável. Duas versões disputaram o engajamento na inserção internacional do Brasil: a americanista ou a globalista. A primeira é herança da aliança estratégica com os EUA, desde a demarcação das fronteiras nacionais e do início da republicanização no Brasil. Houve fases de pragmatismo nessa relação, mas também houve fases de subserviência. Subserviência pelo Brasil ter aderido, sem contrapartidas, a posições norte-americanas e a acordos sem resultados diretos. Já a fase globalista representou maior flexibilidade na formação de alianças, acordos e votações em relação a qualquer país. O que importava nessa agenda era apenas o interesse nacional. Este sim, o objetivo fim da política externa.
Em 24 de setembro de 2019, ao fazer o discurso de abertura da Assembleia Geral, o presidente brasileiro apesentou suas credenciais aos demais estados-membros. De um lado, mantendo certas linhas de força da política externa, como a soberania, a autodeterminação e a não-intervenção, ainda que assumindo uma posição americanista, em termos conjunturais. De outro lado, as opções do presidente demarcaram, sobretudo, ruptura, com a tradição e o estilo da diplomática brasileira. A política externa do “Novo Brasil” possui a marca da ruptura. Da desconstrução. Para além de uma mudança no estilo tradicional da política externa brasileira, a ênfase do presidente e, portanto, a racionalidade pela qual ele ganha destaque, é a da antidiplomacia. Pautada no combate ao socialismo, no combate ao globalismo, no combate à ideologia, no combate ao colonialismo, no combate a corrupção. A origem dessa agenda é derivada da ascensão das pautas domésticas e do perfil de enfrentamento eleitoral na corrida presidencial do Brasil ao cenário externo. É dessa amálgama, entre o estilo combativo e de desconstrução forjado no plano doméstico, com a necessária assimilação de parcela das linhas de força da diplomacia, que a política externa bolsonarista é formada.
Em suma, entre continuidade e ruptura, a política externa de Bolsonaro contém um paradoxo em sua composição. Assimilar, de um lado, a tradição pacifista e negociadora da diplomacia brasileira com a estratégia combativa derivada da arena política nacional.
André Frota é professor dos cursos de Relações Internacionais e Ciência Política e membro do Observatório de Conjuntura do Centro Universitário Internacional Uninter.