Todo brasileiro tem assegurado por lei o direito à integridade pessoal, mas a realidade é um pouco diferente do que vai no papel. Quando um indivíduo agride outro, seja física, psíquica ou moralmente, é muito difícil que esse dano seja reparado. Em primeiro lugar, por causa da lentidão das ações judiciais, mas mesmo quando há condenação, o encarceramento, por si só, não conserta os estragos, tampouco impede que, cumprida a pena, o autor do delito volte a delinquir.
Visando justamente reparar, na medida do possível, esse tipo de dano é que nasceu a justiça restaurativa. À primeira vista, o modelo pode parecer ingênuo e excessivamente brando com os autores de crimes. Entretanto, o método pelo qual a Justiça atua como facilitadora de um acordo entre a parte que errou e a vítima pode servir como alternativa para um país sobrecarregado por crimes, em boa parte impunes, e pelos problemas decorrentes de um sistema prisional violento e pouco educativo.
Por intermédio de um facilitador, a justiça restaurativa reúne vítima, ofensor e comunidade — o que pode inclui a família dos envolvidos e testemunhas. O facilitador atua como único representante do aparato judicial. O papel dele é acompanhar o processo, não tomar decisões ou proferir sentenças. Cabe à vítima o papel principal, como decidir os locais das reuniões, dias e horários, além de aceitar a oferta de reparação, recuperando o poder que lhe havia sido subtraído pela ação do ofensor. O desfecho resulta do entendimento entre os envolvidos.
Instituída formalmente no Brasil pela Resolução 225, de 2016, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a justiça restaurativa ganhou naquele ano o nome de Política Nacional de Justiça Restaurativa no Poder Judiciário. Experiências nesse campo, porém, já vinham sendo realizadas desde 2005 na cidade de Porto Alegre, segundo informe do Ministério Público do Paraná. Em termos mundiais, o modelo data do final dos anos 1970. Foi implantado inicialmente na Nova Zelândia, no Canadá e nos Estados Unidos. Conforme a Enciclopédia Jurídica da PUC de São Paulo, nesses países, as ideias do psicólogo norte-americano Albert Eglash, responsável por cunhar a expressão “justiça restaurativa” em um livro de 1977, parecem ter se combinado ao direito de costumes praticado por tribos indígenas. No caso da Nova Zelândia, o estudioso Howard Zehr cita os Maoris.
Também em 2016, o então senador Ricardo Ferraço (ES) apresentou o PLS 65, que institui o Ato Nacional dos Direitos das Vítimas de Crimes, no qual se inserem as práticas de justiça restaurativa. A matéria aguarda relatório do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ).
Segundo o australiano Terry O’Connell, diretor da Real Justice Australia, a justiça precisa trabalhar para que quem prejudicou se coloque no lugar de quem foi prejudicado. Conforme O’Connell, o método restaurativo não modifica o sistema penal e sim transforma as experiências que as pessoas têm nesse sistema.
Ele participou de audiência pública sobre o tema na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado em 22 de maio.
— É uma forma útil e justa de resolver conflitos, especialmente no âmbito dos delitos de menor poder ofensivo e de outros crimes que, embora graves, precisam não apenas da resposta penal tradicional, mas de um grau maior de resolutividade social, empoderamento das vítimas e restauração dos laços e valores sociais — argumentou na ocasião o senador Lucas Barreto (PSD-AP), que presidiu a audiência.
A juíza Carline Regina Nunes aplica a justiça restaurativa na comunidade Ambrósia, município de Santana, uma das mais violentas do estado do Amapá. Segundo ela, o sistema resolve processos — e não conflitos — levando em conta ainda as falhas da justiça punitiva, como a superlotação de presídios.
— Porque é fácil julgar e dar sentenças. Mas, no dia seguinte, as pessoas têm problemas de novo e voltam pedindo por mais justiça. É por isso que passei a valorizar a restauração e a pacificação social — disse a juíza na audiência.
O método pode até ajudar a solucionar conflitos aparentemente insolúveis por envolverem perdas muito dolorosas.
Em dezembro de 2013, na cidade Planaltina (DF), distante apenas 45 km do Congresso Nacional, Leonardo Henrique Monteiro atropelou seis pessoas da mesma família, matando a matriarca. A filha mais nova perdeu parcialmente a visão. A nora ficou traumatizada e por isso não conseguia engravidar. Leonardo, que fugiu para não sofrer linchamento, foi acusado de homicídio culposo, mas um ano e meio após o acidente ainda não tinha sido julgado. Júlio César Melo, técnico do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJ-DFT), propôs reunir a família e o acusado, o que foi precedido de 19 encontros individuais. Ao final, o motorista compreendeu a dimensão de seu erro e concordou em pagar parte da cirurgia da criança, além do tratamento de fertilização da nora, embora este não tenha sido necessário: com a resolução do caso, o trauma foi superado e a mulher conseguiu engravidar. O ofensor acabou condenado à pena mínima — dois anos em regime semiaberto.
A reparação associada a uma pena judicial não é uma regra rígida. Tudo vai depender do acordo estabelecido e da percepção do juiz sobre a gravidade do caso.
Já sugestão de aplicar a justiça restaurativa em um caso pode ser tanto do magistrado quanto dos envolvidos no conflito. O que o modelo busca é aproximar vítima e ofensor, mas garantindo à vítima um papel de protagonismo durante todo o processo.
Em 2014, dois vizinhos da zona rural do DF brigavam em relação a um limite de terra, o processo foi levado à vara cível e resolvido em tribunal. Ainda assim, eles continuaram a conflitar pelos limites das águas de uma mina por meio de ameaças. Animais de uma das chácaras foram mortos. Nesse caso, o acordo restaurativo envolveu, além das partes, a Agência Nacional de Águas (ANA) e a ONG ambiental WWF, que sugeriram a adoção de um programa de duplo apadrinhamento da mina.
Para a Coordenadora do Programa Justiça Restaurativa do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJ-DFT), Catarina Correia, é comum que a justiça restaurativa seja relacionada à impunidade, mas o modelo está longe disso. “É punição inteligente”, afirma ela em vídeo didático sobre o assunto produzido pelo tribunal.
Júlio Cesar Melo, titular do Núcleo Permanente de Justiça restaurativa do TJ-DFT e facilitador, explica no mesmo vídeo que a justiça criminal pode ser, muitas vezes, ineficiente, ao não garantir que o autor de um delito entenda que agiu errado: “Ele vai ser preso, fica com mais raiva, volta para a sociedade e aí se sente ainda mais justificado para continuar cometendo um crime”.
A promotora de Justiça Sílvia Canela, que atua em comunidade violenta do Amapá, promove círculos de discussão voltados ao engajamento da comunidade, nos quais as pessoas escutam as histórias e perspectivas umas das outras. Conforme relatou no Senado, dezenas de meninas pararam de se automutilar, a criminalidade na região caiu e a escola do local registra crescente Índice de Desenvolvimento da Educação Básica.
— Precisamos ter um novo olhar para o ser humano, para o conflito e para a sociedade. A justiça restaurativa traz o indivíduo à sua essência, seu eu verdadeiro, que é bom — argumentou a promotora.
Justiça restaurativa, mediação e conciliação — entenda as diferenças |
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Justiça restaurativa: É aplicada em infrações de menor e maior potencial ofensivo. Consiste em reuniões mediadas por um facilitador entre vítima, ofensor e comunidade. É da vítima o papel de decidir onde, quando e qual a duração de cada reunião. O objetivo é que as partes cheguem a um acordo para responsabilização do ofensor com reparação de danos. Exemplos: atropelamento, agressão física ou moral, furto, importunação sexual.
Um caso real Vítima: Ana Cristina Ofensor: Pedro Conflito: Pedro assaltou a casa de Ana Cristina. Local: São Paulo Acordo: Pedro fez aulas diárias de futebol, participou de um grupo de jovens de uma igreja e tornou-se voluntário em um projeto social. Ana Cristina ainda adotou Pedro. |
Mediação: É utilizada em conflitos multidimensionais ou complexos, geralmente com carga emocional envolvida. Ocorre de forma que uma terceira pessoa, neutra e imparcial, facilita o diálogo entre duas partes para que elas construam uma solução para o conflito. A mediação pode ou não terminar em um acordo e não tem um prazo definido. Exemplo: conflito entre mãe e pai em torno da guarda dos filhos. |
Conciliação: É aplicada em conflitos simples ou naqueles em que o facilitador pode adotar uma posição mais ativa, mas ainda neutra. É um processo consensual curto, que busca restaurar e harmonizar uma relação social. Exemplo: prejuízo ao consumidor por parte de uma empresa. |
Saiba mais na página do Conselho Nacional de Justiça |
Veja outras opiniões colhidas durante audiência no Senado
“As sentenças resolvem o trabalho dos advogados para que o caso seja encerrado. Na verdade, porém, nunca temos ideia do que a vítima deseja. Nós falamos e pensamos pelas vítimas, acreditando que sabemos o que elas querem” — Violeta Maltos, advogada criminalista e professora mexicana e consultora em projetos de justiça restaurativa.
“O rol de vítimas precisa desaparecer através do processo restaurativo. A vítima precisa deixar de ser vítima. Penas mais duras satisfazem os Estados, mas não resolvem os conflitos. Mas pessoas quebradas pelo delito devem ser transformadas. Mais do que ver o sofrimento do agressor por meio da pena, a vítima precisa recuperar a relação emocional e o respeito e ver o agressor tomar sua responsabilidade pelo delito” — Virginia Domingo, professora da Universidade Internacional de La Rioja, Espanha.
(Agência Senado)